Por sua posição estratégica no coração do Oceano Atlântico, o arquipélago de Cabo Verde foi palco de intensas operações de submarinos alemães, que resultaram no afundamento de dois navios mercantes brasileiros
Por Ricardo José Lustosa Leal
Conselheiro da Embaixada do Brasil em Praia, Cabo Verde
Quem passa pela Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro, depara-se com um monumento em que estão assinaladas em mapa as ilhas cabo-verdianas de Santiago, Santo Antão e São Vicente. Trata-se da memória dos portos visitados na I Guerra Mundial pela esquadra brasileira então criada para patrulhamento do Atlântico, especialmente no circuito Dacar-São Vicente-Gibraltar. Apresentada na Conferência Inter-Aliada de Paris, em novembro e dezembro de 1917, esta esquadra de 1502 homens, dois cruzadores leves e quatro contratorpedeiros - ie, a Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG) do Brasil - materializou-se em janeiro de 1918, decorrência da constatação de um estado de beligerância iniciado pelo Império Alemão e declarado pelo Congresso no Rio de Janeiro em 26 de outubro de 1917. Esse estado de guerra envolveria o torpedeamento dos vapores mercantes Acary (118 metros, 4275 t), do Lloyd Brasileiro, e Guahyba (275 pés, 1119 t), da Companhia de Commercio e Navegação, que haviam atracado a curta distância um do outro no Porto Grande da ilha de São Vicente. A ilha faz parte do arquipélago de Cabo Verde, próximo à costa ocidental da África, no "gargalo atlântico" entre Fernando de Noronha e Dacar. O torpedeamento vinha somar-se aos demais ataques de submarinos e corsários alemães à navegação nacional naquele ano (navios Paraná, Tijuca, Lapa e Macau, todos na Europa).
Croqui do "Porto Grande" de São Vicente
As relações entre o Rio de Janeiro e Berlim já haviam sido rompidas em abril de 1917. Em fevereiro, o almirantado alemão autorizara submarinos - "Untersee Boot", U-Boot - a torpedear quaisquer navios que entrassem em suas zonas de bloqueio. Isto não excluía os do Brasil, que se mantivera neutro desde agosto de 1914, não considerava o café como contrabando de guerra e até 1917 o vendia a ingleses e franceses. O Guahyba e o Acary , justamente, carregavam café e charque. Faziam escala no Mindelo (o "Porto Grande" de São Vicente, onde hoje atua Missão Naval da Marinha do Brasil), para abastecer-se de carvão, fazer aguada e prosseguir até o Havre e Liverpool - o Acary vindo do Rio de Janeiro e o Guahyba, de Santos.
Ainda que detectar submarinos submersos fosse praticamente impossível no início do século XX, por outro lado sua autonomia era limitada e precisavam emergir com frequência. Tal como concebida, a DNOG teria como contribuir no esforço de dissuadir agressões contra navios Aliados, em área que também abarcava Cabo Verde. Nesta área, somente duas canhoneiras inglesas respondiam então – e de maneira inadequada - pelo patrulhamento marítimo. Entre setembro e outubro de 1918, o contratorpedeiro Piauhy (CT-3) patrulharia águas cabo-verdianas, sob o comando do Capitão-de-Corveta Alfredo de Andrada Dodsworth.
O contratorpedeiro Piauhy, da DNOG patrulhou as águas cabo-verdianas
Naquela quadra com quase um século de vida independente, 25 milhões de habitantes, boas tradições militares e meios navais adquiridos no reaparelhamento da Armada estimulado por Rio-Branco poucos anos antes (até hoje é lembrada no País a "esquadra de 1910"), o Brasil de um lado entrou tardiamente no teatro de guerra mais amplo e o fez sem maiores consequências - mas por outro lado tinha capacidade para reagir, ainda que com meios muito limitados; e não poderia deixar de fazê-lo diante das agressões contra seus navios mercantes. A que vitimou o Paraná foi particularmente traumática: navio de 4.466 t , carregado de café, navegava a 10 milhas do Cabo Barfleur (França), iluminado, com a bandeira brasileira içada e a palavra "Brasil" pintada no casco. Após torpedeá-lo, o submarino alemão ainda dispararia cinco tiros de canhão contra os botes de salvamento.
Verdade que a DNOG enfrentaria em 1918 muitas dificuldades para operar.
Como é sabido, mais de cento e cinquenta militares brasileiros foram vitimados em Dacar pelo vírus da gripe espanhola, contraído em escala em Freetown. Quatro tripulantes do Piauhy também faleceriam e podem ter sido sepultados no Mindelo. Do ponto de vista do Rio de Janeiro, entrar ativamente no confronto era porém uma iniciativa incontornável, no plano da política externa tendo ademais por pano de fundo a declaração de guerra dos Estados Unidos ao Império Alemão, em abril de 1917.
Cabo Verde, do seu lado, envolvia-se na dinâmica do conflito por sua posição estratégica - valorizada inclusive duas décadas antes, em 1898, quando esquadra espanhola partira de São Vicente para combater em Cuba contra os Estados Unidos. Em 1916, Lisboa declarava guerra às Potências Centrais (Alemanha e Império Austro-Húngaro), e São Vicente não poderia deixar de interessar aos alemães a partir da decisão de Berlim de torpedear navios mercantes. O Porto Grande era além disto não somente ponto de apoio para abastecimento, mas elo de ligação radiotelegráfica para as comunicações, seja entre entre Lisboa e África, seja da esquadra inglesa no Atlântico Sul com o almirantado em Londres. Vale recordar que o Atlântico Sul, por distante que estivesse do epicentro da conflagração, não deixou de ser engolfado por ela: já em dezembro de 1914 se dera por exemplo batalha naval entre alemães e britânicos nas Malvinas (vitória aliada). Em fevereiro de 1916, oito navios alemães foram apresados no Porto Grande.
As canhoneiras portuguesas Beira e Ibo (foto acima) faziam a proteção do porto
As canhoneiras lusas Ibo e Beira, o posto de vigilância no Ilhéu dos Pássaros (na baía da ilha de São Vicente) e as fortificações de João Ribeiro e Morro Branco (onde hoje funciona o Centro de Instrução Militar das Forças Armadas de Cabo Verde, com uma "Sala Brasil" inaugurada em 2017) terão possivelmente ajudado a repelir em 1917 duas outras incursões de submarinos - mas não lograram impedir no final daquele ano o torpedeamento do Acary e do Guahyba, atraiçoados por cobertura oferecida aos alemães por navio espião caracterizado como mercante holandês. Este zarpara de Salvador dois dias antes dos vapores brasileiros, levando sempre dois dias de vantagem sobre eles.
O vapor brasileiro Guahyba antes de ser torpedeado no porto de São Vicente
Na manhã de 2 de novembro de 1917, ambos foram fatalmente atingidos pelo U-151 sob comando do Kapitänleutnant Waldemar Kophamel: o Guahyba ao zarpar, e o Acary enquanto se reabastecia de carvão. Os feridos foram levados ao hospital do Mindelo, mas perderam a vida no episódio os foguistas Antônio Moura Lima e Octaviano Vargas de Souza. Haviam descido à casa de máquinas do Guahyba e receberam em cheio o impacto da explosão. Como relatava em 15 de dezembro de 1917 o jornal A Capital, de Manaus, os marinheiros "pereceram afogados pelo enorme volume de água que se precipitou rombo a dentro". Os corpos não foram localizados, "desaparecendo com os restos do navio." Em entrevista publicada pelo Correio da Manhã em 22 de novembro de 1917, tripulante do Guahyba refere "um rombo de seis metros de extensão e quatro de largura". O Comandante do vapor, Capitão Paulo Guerra, logrou ainda assim voltar ao porto e intencionalmente encalhar em águas rasas.
O Acary avariado no "Porto Grande"
Cem anos depois do torpedeamento perpetrado pelo U-151, em 2017 é possível a mergulhadores visitar na baía de São Vicente os destroços de pelo menos um dos dois vapores brasileiros, ainda não identificado mas com localização conhecida. Aparentemente, a maior parte do que restou do Guahyba foi desmantelada, para facilitar manobras no porto. Os foguistas brasileiros falecidos no cumprimento de seu ofício podem ser lembrados também por cariocas que passem pelo monumento à DNOG na Praça Mauá, ou por quem visita no Mindelo o Museu do Mar, defronte à baía de São Vicente.
A recuperação da memória dos dois mercantes torpedeados há cem anos serve agora porém à celebração da paz - e da importância de que se reveste no Brasil e em Cabo Verde o trabalho realizado em comum, para manter o Atlântico Sul uma região livre de toda presença militar que não seja de cooperação.
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