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Hoje, 6 de junho de 2014, é comemorado o 70º aniversário da maior operação anfíbia da história: o desembarque dos Aliados na Normandia, que passou à história como o "Dia D". Nas praias francesas consolidou-se a invasão da Europa e a maré do maior conflito da humanidade começou a mudar.
Publicamos, a seguir, um interessante ensaio da Revista Veja, trazendo uma reportagem fictícia sobre o evento que modificou a história.
Ondas, areia, arame farpado, barricadas, minas. Com os corpos castigados
pelo peso do equipamento na mochila, de rifles em punho, dezenas de milhares de
soldados americanos, britânicos e canadenses avançam sobre as praias
do litoral norte da França. Acima de seus capacetes, milhares de aviões
fazem a varredura do espaço aéreo atacado. Em todo o horizonte,
milhares de embarcações deixam os colossais portos artificiais e
atracam nas praias, despejando equipamentos e pessoal na Gália invadida.
Ar, terra e mar são parte de uma só engrenagem. Normandia, 6 de
junho de 1944. O primeiro dia de Netuno - a fase de arranque da Operação
Overlord - encerra a maior invasão anfíbia de todos os tempos. Os
Aliados estão de volta à Europa continental para tentar acabar com
o jugo da Alemanha nazista.
Lograr este intento, é sabido, será
uma outra história. Contudo, sob qualquer aspecto, a manobra de desembarque
na França setentrional não tem precedentes. Mais de 185.000 homens
e 20.000 veículos aéreos, marítimos e terrestres foram envolvidos
no ataque, minuciosamente planejado pela equipe comandada pelo general Dwight
D. Eisenhower. Inicialmente concebido para ocorrer na segunda-feira,
dia 5, o "Dia D" - como a data foi chamada pelos Aliados - foi adiado
por 24 horas pelas condições meteorológicas inapropriadas.
Ainda assim, a incerteza sobre a efetivação da gigantesca operação
não se dissipara por completo, até porque os céus franceses
permaneciam lúgubres a olho nu.
O diretor da equipe de meteorologia
de Eisenhower, o escocês Jim Stagg, garantiu ao general que o tempo viraria
a contento dos Aliados entre segunda e terça-feira. Mesmo assim, dos três
chefes das Forças Aliadas, apenas dois deles - Bernard Montgomery, do Exército,
e Bertram Ramsey, da Marinha - eram favoráveis ao ataque no dia 6; o comandante
da Força Aérea, Arthur Tedder, continuava considerando que a visibilidade
dos céus gauleses não propiciaria suficiente cobertura aérea.
Eisenhower sabia que, dadas as condições do tempo, um novo adiamento
empurraria o ataque para, no mínimo, 19 de junho - e milhares de soldados
já estavam havia mais de 50 horas em alerta em seus postos, espremidos
em naves de desembarque, prontos para o assalto.
O fator surpresa também
estava do lado do americano - apesar de sua magnitude, a operação
seguia ignorada pelos oponentes. Em primeiro lugar, porque os Aliados haviam executado
com sucesso um plano de dissimulação do ataque à Normandia,
fazendo o comando germânico acreditar que a invasão ocorreria no
Passo de Calais, destacando até mesmo o general George Patton para comandar
um fictício exército de 12 divisões no local. Além
disso, somente os Aliados podiam contar com essas previsões da meteorologia:
todas as estações alemãs - na Islândia, na Groenlândia,
em Spitzbergen e na ilha de Jan Mayen - haviam sido tomadas na preparação
do ataque pelas forças anglo-americanas. Ou seja, para os germânicos,
jamais uma manobra militar anfíbia poderia ser feita sob aquele clima.
Aniversário em Ulm
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Exatamente às 4 horas da madrugada do dia 5, os líderes militares
responsáveis pela Operação Overlord ("suserano",
na tradução para o português) estavam reunidos no quartel-general
de Eisenhower, em Southwick House, Portsmouth, na Inglaterra. Cabia única
e exclusivamente ao comandante supremo tomar a fatídica decisão.
"Estou certo de que temos de prosseguir. Não vejo como possamos proceder
de outra forma", disse Eisenhower, depois de todas as ponderações
possíveis, aos oficiais. "Ok, vamos lá".
Enquanto os
comandantes das três armas disparavam as ordens decisivas a seus subordinados,
os alemães repousavam. Enganados pela camuflagem aliada, seguiam tranquilos
de que a invasão - que, é verdade, esperavam mais cedo ou mais tarde
- ficaria para bem mais tarde. O marechal germânico Erwin Rommel, nomeado
por Hitler em janeiro como Comandante-em-Chefe do Exército B, responsável
por repelir qualquer tentativa de invasão na Europa, estava certo de que
aquela terça-feira seria apenas mais uma no calendário. Despreocupado,
voou para Ulm, em seu país natal, para celebrar o aniversário da
esposa.
A invasão da Europa começou nos primeiros minutos
do dia 6, com a aterrissagem dos paraquedistas e planadores da 6ª
Divisão Aeroterrestre Britânica, a Oeste do Rio Orne. Este grupo se
responsabilizaria pela proteção do flanco esquerdo das praias que
seriam invadidas pelas cinco divisões aliadas; já o flanco direito
ficaria sob a responsabilidade da 82ª e da 101ª
Divisões Aeroterrestres Americanas, que pousaram entre Ste. Mère
Eglise - a primeira cidade na França a ser libertada - e Carentan. No total,
as três divisões compreendiam 23.400 homens, que sofreram com fortes
ventos na região. Muitos deles foram parar no interior francês, e
seus comandantes tiveram extrema dificuldade em reuni-los para atacar os alvos
pré-estabelecidos. Os poucos que conseguiam se agrupar, entretanto, investiam
com fúria contra os inimigos. Ironicamente, a dispersão confundiu
a resistência germânica, para quem os pára-quedistas aliados
haviam se espalhado por toda a Normandia; sem captar um padrão de movimento,
os alemães não sabiam como responder aos ataques.
Um grupo
de soldados da célebre 82ª Divisão americana logo conseguiu
encurralar a 91ª Divisão germânica, comandada pelo General Falley,
evitando assim quase toda a resistência tedesca na porção
mais ocidental do desembarque aliado. No lado oriental, os bravos boinas-vermelhas
do 9º Batalhão de Paraquedistas britânicos, comandados
pelo tenente-coronel Otway - que conseguiu agrupar apenas 150 homens -, lograram
imprimir o martírio contra as fortificações alemãs
em Merville, em uma das batalhas mais sangrentas da jornada. Dessa forma, ao anoitecer,
ambos os flancos da invasão já estavam seguros.
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Maus bocados
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Para o ataque às praias da Normandia - que, no total, perfaziam uma faixa
litorânea de aproximadamente 80 quilômetros de extensão -,
o comando militar aliado enfileirou cinco diferentes divisões: duas britânicas,
uma canadense e duas norte-americanas. De Oeste a Leste, tais agrupamentos atendiam
pelos codinomes Utah, Omaha, Gold, Juno e Sword, cada um responsável por
uma porção do litoral. O ataque às praias começou
às 6h30 da manhã, pelos homens da 4ª Divisão de Infantaria
Americana - justamente na que seria a mais tranqüila das abordagens, a de
Utah, onde os paraquedistas já haviam imobilizado boa parte da
resistência alemã. Para facilitar, a estrutura das defesas da região
eram pífias. Quando a noite chegou, 23.000 soldados já haviam desembarcado,
levando consigo 1.700 tanques, caminhões e metralhadoras - o número
de baixas foi foi considerado proporcionalmente baixíssimo, 197 homens.
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Por
diferenças na maré, os desembarques em Juno, Gold e Sword foram
até uma hora e meia posteriores aos de Utah e Omaha. Em Sword, onde os
paraquedistas britânicos haviam neutralizado a resistência,
a 3ª Divisão de Infantaria da Grã-Bretanha não soube
segurar a vantagem apesar de um início promissor - em poucas horas já
havia conquistado a maioria de seus alvos. A partir daí, o avanço
foi lento, provocado pelo tráfego intenso nas vias de transporte de suprimentos.
Por causa disso, a cidade de Caen, um dos objetivos do dia, permaneceu em mãos
inimigas.
Em Juno, a 2ª Brigada Armada do Canadá chegou ao
interior após o pôr-do-sol, depois de problemas com a maré
alta - a primeira vaga de naves de desembarque se perdeu praticamente por inteiro.
Entretanto, próximo ao final do dia, a poderosa 12ª Divisão
Panzer alemã se colocava no caminho dos Aliados, o que certamente não
significaria vida fácil para os canadenses. Em Gold, os britânicos
passavam por maus bocados nos momentos subsequentes ao desembarque, mas,
recuperados, foram saudados por civis franceses, que atiraram flores durante sua
passagem.
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Saraivada de bombas
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As batalhas mais sangrentas tiveram lugar em Omaha, onde desde antes mesmo do
desembarque os americanos já se viam em apuros. Logo após a partida
das primeiras naves que começariam a levar os 34.000 homens para suas missões,
um colérico vento sudoeste abateu em sequência diversas embarcações
aliadas. Tanques anfíbios afundaram como paralelepípedos: da primeira
vaga de 96 veículos, um terço se perdeu. Das 16 escavadeiras blindadas
enviadas para destruir obstáculos, apenas seis chegaram a seu destino -
e, destas, três não funcionaram.
Os soldados que lograram
chegar à praia foram recebidos com uma saraivada de bombas, tiros de metralhadora
e morteiros. O caos se manteve por várias horas, com baixas significativas
em ambos os lados. Para sorte dos Aliados, porém, os germânicos não
tinham peças de reposição, enquanto que os invasores ganhavam
reforços a cada minuto vindos dos portos artificiais, os Mulberries,
especialmente desenhados para essa operação. Dessa forma, aos poucos,
a supremacia no território em Omaha acabou finalmente obtida.
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Para
selar e ratificar o êxito terrestre, a Força Aérea Aliada,
com seus Spitfires, Typhoons, Thunderbolts e Lancasters, foi também de
crucial importância. Além de lançar os paraquedistas
no início da jornada, bombardeiros garantiram a supremacia no céu
normando durante o dia. A outrora temível e poderosa Luftwaffe -
que na conquista da França, em 1940, aterrorizou os britânicos com
os Stukas e Bf-109s - terminou o dia com apenas 185 aeronaves em condições
de combate. No total, os Aliados colocaram 13.743 aviões no espaço
aéreo gaulês, perdendo apenas 114.
Unidades clandestinas
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Os números finais do já histórico 6 de junho de 1944 informam
que 75.515 soldados britânicos e canadenses e 57.500 americanos desembarcaram
pelas praias; outros 7.900 e 15.500, respectivamente, pelo ar. Calcula-se que
2.500 militares aliados tenham sido mortos, cerca de 1.000 apenas em Omaha. As
baixas totais, incluindo mortos, feridos, desaparecidos ou prisioneiros, são
estimadas em 6.600 americanos, 3.000 britânicos, 946 canadenses e em torno
de 6.500 alemães.
O presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, foi econômico ao comentar
o êxito da primeira fase da Operação Overlord. "Está
tudo correndo de acordo com o planejado", sentenciou. O líder britânico
Winston Churchill saudou o desempenho das tropas aliadas em seu pronunciamento
na Câmara dos Comuns: "Muitos perigos e dificuldades que ontem nos
pareciam extremamente terríveis já são passado".
O
mais entusiasmado dos líderes, porém, foi o general francês
Charles de Gaulle. "A grande batalha começou. Depois de tanto conflito,
ódio e ira, o confronto final está diante de nós. Esta é
a verdadeira Batalha da França", afirmou, exaltado, em transmissão
radiofônica para os compatriotas, convocando-os para a pendenga. E os franceses
realmente serão de grande valia para as tropas aliadas nesta campanha.
Estima-se que haja 175.000 integrantes da resistência tricolor espalhados
pelo país, divididos em 44 unidades clandestinas sob o comando do general
Pierre Koenig. Como este, por sua vez, responde a Eisenhower, essa legião
deverá se tornar parte integrante e ativa dos esforços de guerra
dos Aliados.
Após o coruscante êxito do desembarque na Normandia,
o mundo espera agora os próximos movimentos da Operação Overlord.
Calcula-se que será necessário transportar ainda 2 milhões
de soldados - todos equipados - para a França, a fim de que o processo
de retomada da Europa seja completado. De acordo com o plano inicial, as tropas
invasoras precisam caminhar rumo ao interior e tomar posse de uma área
de alojamento - que seria a baixa Normandia, a Bretanha e partes do Maine e Anjou.
Com esse torrão de segurança, os Aliados interromperiam sua marcha
e se preparariam para atacar a fronteira da Alemanha, para depois partir em direção
ao vale do Ruhr, gangrenando o coração industrial de Adolf Hitler.
Contudo, a exemplo dos ventos normandos, tais planos são volúveis
e seu sucesso, imponderável - como bem sabe o comandante Eisenhower.
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Fonte: Veja.com
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