O
historiador Robert Gildea desmonta a versão oficial do que
aconteceu na França
durante a ocupação nazista
Por
Guillermo Altares
O
discurso nacional que a França construiu depois da Segunda Guerra Mundial é que
o país foi libertado pela Resistência, com alguma ajuda dos aliados, e que
“salvo um punhado de miseráveis”, nas palavras do general Charles de Gaulle, o
resto dos cidadãos se comportou como verdadeiros patriotas. Nada mais distante
da realidade. O professor britânico Robert Gildea desmonta essa imagem
nacional, que já estava bastante fissurada, em seu novo livro, Combatientes en
la Sombra (Combatentes na sombra, em tradução livre), que traça um minucioso
retrato da ocupação no qual, mais que de Resistência Francesa, ele prefere
falar de “resistência na França” pelo enorme número de estrangeiros que se juntaram
à luta contra o nazismo.
“A
França foi derrotada e ocupada pela Alemanha. Quando foi libertada e unificada
de novo, criou-se uma história única que afirma que todo o país alcançou a
liberdade unido sob a liderança de De Gaulle e esse relato foi propagado por
meio de medalhas, cerimônias, títulos”, explica Robert Gildea, professor de
História Moderna do Worcester College da Universidade de Oxford, cujo livro
será publicado nesta semana na Espanha pela Taurus, com tradução de Federico
Corriente. Os esquecidos nessa história não foram apenas os espanhóis que
fugiram do franquismo, mas também judeus da Polônia ou da Romênia, os
comunistas e as mulheres, cujo trabalho como resistentes também foi
subestimado.
O
livro ainda não foi publicado na França – está previsto para o ano que vem –, mas
recebeu excelentes críticas no ano passado no mundo anglo-saxão em veículos de
comunicação como The Economist e The New York Review of Books, cuja resenha
assinada pelo grande historiador de Vichy Robert O. Paxton se intitulava “A
verdade sobre a Resistência”. Gildea, que publicou outros ensaios sobre a
história da França nos quais estuda o mesmo período, reconhece que a imagem
ideal da sociedade francesa já havia sido questionada em filmes como o
documentário A Dor e a Piedade ou Lacombe Lucien, longa-metragem de Louis
Malle, que teve como roteirista o escritor Patrick Modiano, que ganhou o prêmio
Nobel. No entanto, seu estudo de 650 páginas, que usa tanto fontes documentais
quanto entrevistas, é o mais completo escrito até agora do ponto de vista
crítico sobre a Resistência durante a ocupação, entre 1940 e 1944. O enorme
sucesso alcançado na França pelas seis temporadas da série Un Village Français
(Um Vilarejo Francês) demonstra o quanto continua sendo um tema delicado e sempre
atual.
“Temos
de estudar o que aconteceu na França no contexto da luta na Europa contra o
nazismo, mas também do Holocausto e da Guerra Fria. Muita gente da Resistência
combateu nas Brigadas Internacionais; são o que Arthur Koestler, que
compartilhou cativeiro com eles, chamou de 'escória da Terra' num livro, gente
que não tinha para onde ir. Muitos republicanos foram presos na França. O
objetivo deles era acabar primeiro com os nazistas e depois com Franco, de
fato, fizeram uma tentativa fracassada de invadir a Espanha em 1944. O relato
simplista da libertação nacional francesa só fornece uma parte da história, não
toda”, continua Gildea em uma conversa telefônica.
“O
papel dos comunistas também foi muito importante, especialmente durante a
libertação de Paris. Durante muitos anos houve um confronto entre as duas
versões, a gaullista e a comunista. Em 1944, os nazistas capturaram um grupo de
resistência formado por comunistas e judeus da Europa de Leste e o usou como
propaganda dizendo que eram 'criminosos estrangeiros', mas havia algo de
verdade nisso”, afirma.
O
livro de Gildea não estuda apenas os grandes movimentos históricos, mas está
cheio de personagens como Jean-Pierre Vernant, um dos grandes helenistas
franceses, que foi uma figura muito importante na Resistência, mas nunca quis
se vangloriar disso. Quando a guerra terminou, durante a qual arriscou a vida
muitas vezes, voltou para seus livros e seus clássicos. Também aparece Lew
Goldenberg, filho de revolucionários russos de origem judaica próximos de Rosa
Luxemburgo, que se negou a aceitar o armistício, ou Leon Landini, um jovem
toscano que participou do descarrilamento de um trem alemão em outubro de 1942,
quando tinha 16 anos.
E,
naturalmente, estão os republicanos espanhóis, não apenas os membros de La
Nueve, a mítica brigada que foi a primeira a entrar em Paris em agosto de 1944
e cujo papel foi silenciado durante anos – só em 2008 foram inauguradas placas
mostrando o seu percurso. No livro aparecem combatentes como Vicente López
Tovar, nascido em Madri em 1909, que passou a juventude em Buenos Aires, lutou
na defesa de Madri e na Batalha do Ebro e, depois de fugir para a França,
participou da organização do maquis. “A Guerra Civil tinha nos endurecido
muito”, disse o próprio López Tovar a Gildea.
“Depois
do desembarque na Normandia, em junho de 1944, houve uma guerra civil dentro da
Segunda Guerra Mundial, não somente entre os resistentes e os nazistas, mas
também com a milícia, a força paramilitar de Vichy”, diz o professor de Oxford.
Em relação à ocultação do papel desempenhado pelas mulheres, Gildea explica que
só foram contempladas com medalhas aquelas que participaram de ações militares,
enquanto muitas mulheres trabalharam na organização da resistência, papel tão
perigoso quanto o combate, mas nunca totalmente reconhecido. Tudo isso não
significa que os franceses não tiveram nenhum papel, mas não foram os únicos
heróis daquela guerra.
"O
que esses espanhóis todos estão fazendo desfilando?"
A
libertação de Toulouse, em 19 de agosto de 1944, foi coordenada pelas forças
lideradas por Jean-Pierre Vernant, mas os republicanos tiveram um papel
essencial. De fato, regiões como o Périgord ou cidades como Foix foram
liberadas diretamente pelos espanhóis, coisa que não agradou muito De Gaulle.
Gildea relata que o general visitou Toulouse muito rapidamente porque não
queria perder nenhum pingo do controle sobre os territórios dos quais os
nazistas estavam sendo expulsos.
Os republicanos participaram do desfile da
libertação com os capacetes dos soldados alemães pintados de azul. Quando De
Gaulle viu isso, exclamou: “O que estão fazendo todos esses espanhóis
desfilando com as Forças Francesas livres?”. É uma anedota que, para o
historiador britânico, reflete a profunda mudança que estava acontecendo na narração
da Resistência e na tomada do poder na França.
Fonte:
El País
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