O historiador militar inglês revela em seu novo livro que o exército americano praticava fuzilamentos sumários como os alemães e que a união dos Aliados não impediu que britânicos e americanos discutissem feio
Por Luiz Antônio Giron
História militar é um gênero peculiar de historiografia. O historiador que se dedica ao tema em geral vasculha um número enorme de arquivos e recolhe depoimentos que, aparentemente, não alteram muito a interpretação de fatos do passado bélico. Mas é justamente nesses detalhes que reside a distinção do historiador militar do historiador habitual. Um dado quase imperceptível por estes é capaz de mudar a visão daquele em relação ao tema que pesquisa.
O inglês Antony Beevor, de 71 anos, é um desses vasculhadores de bancos de dados e bibliotecas capaz até mesmo de inverter a concepção de alguns episódios da Segunda Guerra Mundial. São dele os livros “Stalingrado”, “Berlim 1945: A Queda” e “A Segunda Guerra Mundial”, um dos volumes mais completos e atualizados sobre o tema. Seu novo livro, “A Batalha das Ardenas: A Cartada Final de Hitler”, de 2015, acaba de ser lançado no Brasil pela editora Planeta.
Mais uma vez, Beevor apresenta pequenos grandes detalhes inéditos. A ofensiva que envolveu Aliados e Eixo na tríplice fronteira da Bélgica, França e Luxemburgo, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945, passou à história como uma campanha coadjuvante da tomada de Berlim pelo Exército Vermelho. Beevor demonstra, porém, que a Batalha das Ardenas propiciou o avanço soviético, pois abalou os recursos do exército alemão e eliminou suas reservas de soldados experientes. Não apenas: o autor revela que foi a batalha mais sangrenta no front ocidental, a ponto de ter comprometido a reputação de exército ético alimentada pelos americanos.
Conforme Beevor, o exército americano fuzilou sumariamente prisioneiros com crueldade semelhante aos inimigos nazistas – estes, sim, já conhecidos pela selvageria. Nesta entrevista exclusiva, Beevor conta que escolheu as Ardenas como objeto de pesquisa para fazer uma revisão das ideias estabelecidas sobre o episódio. Beevor mostra que é um subversor de noções preconcebidas.
Por que o senhor escolheu a Batalha das Ardenas como o tema?
Havia muitas razões fortes para escolher a ofensiva das Ardenas, em dezembro de 1944, como assunto. Os russos sempre reivindicaram, e fizeram isso novamente no ano retrasado, que derrotaram os alemães por conta própria. Isso não é verdade. A derrota imposta aos alemães pelos americanos arruinou a retaguarda da Wehrmacht e permitiu que o Exército Vermelho logo depois atravessasse o rio Vístula e atingisse o rio Oder em duas semanas. Desnecessário dizer que Stalin tentou afirmar que ele salvou os americanos com sua ofensiva de janeiro.
A história dos combates nas condições de inverno mais severas fez com que muitas pessoas comparassem a batalha com Stalingrado, mesmo que não tenha ocorrido em uma cidade. O exército alemão desprezou os americanos, e cometeu um grande erro. Embora muitos soldados tenham fugido, um número suficiente se manteve tão bravamente que retardou os atacantes. Foi o suficiente para que o general Eisenhower trouxesse reforços em massa e invertesse a situação.
O assunto também é interessante por causa das rivalidades e do mal-estar entre os generais aliados. Por causa da surpresa e do choque do ataque, Eisenhower teve que dar o comando de dois exércitos americanos no flanco do norte ao marechal britânico Montgomery. Embora Montgomery tenha manuseado sua parte da batalha sensivelmente, ele conseguiu indignar os americanos. Seu superior em Londres, marechal Brooks disse uma vez que “nada traz o pior nas pessoas do que o alto comando”. Certamente foi aqui. Montgomery se comportou com tamanha arrogância perante os generais americanos que azedou o relacionamento da Grã-Bretanha com os Estados Unidos por um longo tempo.
Montgomery (ao centro), com seus quatro comandantes de Exército subordinados nas Ardenas: Beevor demonstra que sua arrogância prejudicou a relação entre britânicos e norte-americanos por um bom tempo.
Qual a importância da Batalha das Ardenas hoje?
A importância das Ardenas hoje se refere em parte à questão das relações anglo-americanas, mas também às relações Leste-Oeste e a compulsão do presidente Putin de criar uma lenda de que a União Soviética poderia ter derrotado a Alemanha nazista sozinha.
Que informação não publicada o senhor descobriu durante a pesquisa do livro?
Encontrei muitos dados novos, especialmente sobre as discussões furiosas entre os generais, o sofrimento dos civis e a experiência dos soldados em condições terríveis. Eu também descobri muitos detalhes sobre a execução dos prisioneiros pelos americanos. É um assunto tabu, que os historiadores evitaram no passado. Porém, os arquivos nos EUA, Alemanha, Bélgica e Grã-Bretanha possuem uma quantidade enorme de documentos fascinantes.
Ao contrário de muitos estudos da Segunda Guerra Mundial, seu livro não se concentra em um conjunto de personagens. Na verdade, parece uma história muito impessoal, baseada em uma grande quantidade de depoimentos. Por que você escolheu essa forma de narrativa?
Meu livro tem muitos personagens e nenhum dos revisores da Grã-Bretanha, da Alemanha ou dos Estados Unidos concorda que é impessoal. O ponto do livro, como todos os meus outros trabalhos, é tentar transmitir, especialmente para uma geração mais nova, como era a realidade daquela guerra para soldados e civis.
O historiador militar Antony Beevor
As Ardenas foram o melhor momento para os soldados americanos na Europa?
Os confrontos nas Ardenas foram, junto com a luta na Floresta de Hürtgen, os piores momentos para os soldados americanos na Europa.
Quais foram os principais erros e acertos entre oponentes?
Todo o plano alemão estava condenado ao fracasso, já que parece ter sido foi inventado por Hitler quando doente de icterícia e sob a influência de drogas. Ele tinha uma visão irremediavelmente otimista daquilo que o exército alemão enfraquecido poderia alcançar. A ideia de abrir caminho até Antuérpia e tomar o principal posto de abastecimento dos Aliados era ridícula. Seus generais sabiam que a operação não tinha chances, mas eles tinham que passar por isso. O plano ocorreu após a tentativa de assassinar Hitler, em 20 de julho, e mostrava que o Partido Nazista e as SS poderiam forçar a nação alemã a lutar até que o próprio Hitler morresse.
O erro dos Aliados foi achar que a Alemanha não poderia durar muito tempo e seria incapaz de montar um ataque com dois exércitos de tanques e um exército de infantaria, sem que eles percebessem. Seu grande erro foi ver o curso das prováveis ações alemãs pelos olhos de generais racionais, quando na verdade as decisões estavam sendo tomadas por um megalômano.
Há uma diferença sensível entre a quantidade e qualidade dos relatos de soldados americanos, britânicos, russos e alemães na Segunda Guerra Mundial?
Havia uma grande diferença entre unidades de elite e unidades comuns em todos os exércitos. Mas o que é impressionante são as semelhanças entre as unidades comuns. Um estudo britânico de 1943 mostrou que em um pelotão de cerca de 30 homens, três ou quatro enfrentariam os oponentes, um número similar evitaria o combate a todo custo, e o resto seguiria os corajosos se as coisas fossem bem ou fugiria com os outros se as coisas corressem mal.
Se fosse possível escolher apenas um livro da Segunda Guerra Mundial, qual escolheria? E por quê?
É impossível escolher apenas um livro para toda a Segunda Guerra Mundial, mas se eu escolhesse um livro da frente oriental, seria o romance de Vasili Grossman, “Vida e Destino”. É uma homenagem deliberada a Tolstoi. Esse romance é uma espécie da “Guerra e Paz” da era estalinista e daquela guerra.
O senhor já cobriu em seus livros uma boa parte das principais campanhas da frente européia na Segunda Guerra Mundial, com Stalingrado, Berlim, Dia D, Ardenas e Creta. Qual é o próximo?
O meu próximo livro é “Arnhem – A Batalha das Pontes”, sobre a invasão aérea aliada da Holanda, em setembro de 1944. Era um plano britânico muito ruim e que falhou, fazendo os civis holandeses sofrerem até o fim da guerra com a fome infligida pelos alemães. Em algum momento também poderei abordar Kursk [a maior batalha de tanques da história, ocorrida em julho de 1943, na Rússia].
Como foi o desempenho de vendas de “Berlim 1945: A Queda” na Rússia? Lá eles não gostaram de algumas afirmações suas sobre a tomada da capital alemã, como no caso dos estupros
Eles certamente não gostaram. Sou tecnicamente sujeito a cinco anos de prisão na Rússia se voltar. Provavelmente nada aconteceria, mas não vale a pena correr o risco.
Fonte: Isto É
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