"No próprio dia da batalha, as verdades podem ser pinçadas em toda a sua nudez, perguntando apenas;
porém, na manhã seguinte, elas já terão começado a trajar seus uniformes."

(Sir Ian Hamilton)



sexta-feira, 9 de setembro de 2022

"NOSSA INDEPENDÊNCIA FOI CONSOLIDADA NA GUERRA" - ENTREVISTA COM O DIPLOMATA HÉLIO FRANCHINI NETO

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O historiador e diplomata Hélio Franchini Neto diz que batalhas contra Portugal envolveram mais soldados que as de Simon Bolívar e ajudaram a criar a identidade nacional


Por Duda Teixeira 
   

O quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, eternizou o momento em que D. Pedro I declarou, em 7 de setembro de 1822, que o Brasil seria um império separado de Portugal. Para o historiador e diplomata Hélio Franchini Neto, a pintura em que o protagonista ergue a espada não traduz a realidade, por mostrar a independência como algo rápido, pacífico e sem complicações. Amparado em pesquisas recentes, ele afirma que a consolidação desse processo só se deu após batalhas encarniçadas, que envolveram mais homens que aquelas lideradas pelo venezuelano Simon Bolívar, o Libertador da América espanhola. 

Formado em direito, com mestrado em ciência política, Franchini Neto defendeu uma tese de doutorado em história sobre esse tema, em 2015. O material foi adaptado para o público geral e acaba de ser publicado no livro Redescobrindo a Independência: uma História de Batalhas e Conflitos Muito Além do Sete de Setembro (Editora Benvirá). Depois de trabalhar na embaixada brasileira em Bogotá, Franchini Neto, de 43 anos, assumiu no início do ano a vice-chefia na assessoria de relações federativas do Itamaraty com o Congresso. Ele conversou com a Crusoé.


Em seu livro, o senhor argumenta que a “Independência foi um desenrolar caótico, incerto, marcado por disputas, heterogeneidade de visões e de interesses, conflito político e guerra”. Como chegou a essa conclusão?

Uma vez, li em um livro que a guerra entre as forças de Portugal e de D. Pedro na Bahia envolveram mais soldados que a tropa do libertador venezuelano Simon Bolívar. O jovem imperador mobilizou, entre Exército e Marinha, algo em torno de 15 mil soldados no primeiro semestre de 1823. Bolívar, que liderou a independência de Venezuela, Colômbia e Equador, não ultrapassou 10 mil. Esse dado me impressionou muito. Então, continuei estudando o tema até decidir fazer um doutorado. Meu objetivo inicial era apenas o de mapear as operações militares desse período, mas aos poucos fui vendo que as batalhas eram muito maiores do que eu imaginava e que ocorreram em três frentes principais: na Bahia, no Norte e na Cisplatina, hoje Uruguai. Além dos números superlativos, elas se chocavam com as narrativas existentes. Ainda se fala muito que o conflito na Bahia foi entre baianos e tropas portuguesas ali presentes. Mas a guerra foi muito mais ampla e complexa.


Em que sentido?

Para começar, os dois militares baianos que começaram a luta eram originalmente defensores das Cortes de Lisboa. A disputa que se seguiu era local, pelo poder militar da província. Depois que um dos lados , aquele liderado por Manoel Pedro, foi derrotado, seus partidários refugiaram-se na cidade de Cachoeira e se aproximaram de D. Pedro. No fim de 1822, essa guerra civil já tinha ganhado outra dimensão. Portugal enviou sucessivamente o máximo de tropas que pôde, para apoiar o brigadeiro Ignácio Luiz Madeira. De 3 mil soldados, ele passou a contar com 10 mil no final do ano. Essa diferença, de 7 mil ou 8 mil soldados, é equivalente à expedição enviada pela Espanha para lutar contra Bolívar na Venezuela e na Colômbia. Vale ressaltar também que, entre os que defenderam o lado de D. Pedro, não havia só baianos. Pernambucanos, paraibanos e mineiros também lutaram.


A realidade nessas três frentes foi muito cruenta?

Uma estimativa é a de que entre 3 mil e 5 mil morreram no período de um ano, entre 1822 e 1823. Só na Bahia teria havido de 2 mil a 4 mil óbitos. Cerca de mil baixas foram por doenças no fronte. Considerando que 30 mil soldados foram mobilizados, isso dá uma taxa de 10% de mortos, sem contar os feridos. É uma proporção muito alta. No Piauí, o major português João José da Cunha Fidié reuniu 1,5 mil homens para lutar contra os partidários de D. Pedro, que recrutaram entre 2,5 mil e 3 mil para combater na Batalha do Jenipapo. Eles se enfrentaram ao longo de cinco horas, deixando entre 200 e 400 mortos. Foi um período de lutas encarniçadas.

Batalha do Jenipapo, no Piauí: um dos maiores enfrentamentos da Guerra de Independência


O que dizem os relatos desses conflitos?

Alguns depoimentos são incríveis. Comandantes portugueses reclamaram que, no cerco a Salvador, não se podia colocar a cabeça para fora da trincheira, porque isso seria morte na certa. Do lado oposto, um coronel que tinha mil soldados falou da dificuldade de alimentá-los e de conseguir calçados para eles. Também conta que cada ferido que ia para o cirurgião era uma morte certa. D. Pedro chamou isso de uma “crua guerra de vândalos”.


Por que o sr. não fala em brasileiros lutando contra portugueses?

Até a chegada da corte portuguesa, em 1808, o Brasil era formado por duas identidades: a local — como mineiros, paraenses, cearenses, baianos — e a portuguesa, ligada ao rei. A identidade brasileira ainda era incipiente. As longas distâncias dificultavam um laço mais forte entre as distintas populações. Quem saísse do Maranhão num barco demorava 15 dias para chegar a Lisboa. Mas a viagem até a Bahia, por causa das correntes marítimas do Atlântico, tardava quase três meses. A vinda de D. João VI alterou completamente essa ordem. Em 1808, o Rio de Janeiro se tornou a capital do Império Português, com tribunais, academias militares, corpo diplomático. Em 1815, o Brasil deixou de ser colônia, com a criação do Reino do Brasil, o que constituiu um primeiro elemento unificador. Esse movimento de coesão não se deu na América Espanhola, onde os núcleos continuaram vivendo de forma relativamente autônoma. Se a Coroa não tivesse vindo para o Brasil, poderíamos hoje estar fragmentados em vários países, como ocorreu no restante da América Latina.


As guerras que se seguiram à Independência ajudaram a moldar essa identidade brasileira?

A presença da corte, embora trouxesse essa sensação de unidade, não gerava benefícios homogêneos para todas as regiões. No Norte, havia descontentamento por causa dos impostos pagos para financiar o Estado. Quando os portugueses finalmente tomaram a decisão de acabar com o poder do Rio de Janeiro e dar primazia a Lisboa, após a Revolução do Porto, vários grupos políticos buscaram um projeto alternativo. Mas, em muitas províncias, o apoio a D. Pedro era frágil. Então, tudo ocorreu de maneira caótica, incerta. Fagulhas de guerra civil se espalharam por todos os lados. Em muitos casos, houve lutas violentas. Em outros, negociação. A guerra na Bahia foi o primeiro confronto que se poderia chamar de nacional, com forças mobilizadas por D. Pedro e por Lisboa. Quando a poeira baixou, paraibanos, cearenses, baianos e mineiros começaram a se identificar como brasileiros.


O que teria acontecido se os partidários de D. Pedro tivessem perdido essas guerras?

Depois da Declaração da Independência, Portugal tentou salvar alguma coisa do território. Naquela época, o Brasil era visto como dividido em duas regiões. O Sul já estava perdido, mas os portugueses ainda nutriam esperanças de recuperar o Norte. Um parlamentar português sugeriu que se fizesse algo parecido com o que ocorreu nos Estados Unidos, em que o Império Britânico logrou manter o Canadá entre suas possessões. No Brasil, a Bahia era o centro estratégico, pois era a transição entre o Norte e o Sul. Se os militares portugueses tivessem vencido as batalhas nessa região, eles poderiam ter permanecido com Pernambuco, Piauí, Pará e Maranhão. O Norte do Brasil se tornaria um país separado e avançar sobre o Sul, na tentativa de retomar tudo. Não foi o que aconteceu. Portanto, pode-se deduzir que nossa independência foi consolidada na guerra. Um desfecho distinto dessas batalhas mudaria radicalmente o rumo da história.

Fonte: Crusoé

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