15 de agosto de 1944: o dia em que tropas das ex-colônias na África liberaram a França do nazismo
Por Adriana Moysés
A França comemorou ontem (15) os 75 anos do desembarque de tropas aliadas na região da Provença (sul), também conhecida como “Operação Dragão”, uma etapa determinante para a liberação do país da ocupação nazista no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Dos 235.000 combatentes franceses que chegaram às praias na costa do Mediterrâneo, 90% eram soldados africanos provenientes das ex-colônias do norte da África e da África subsaariana.
O reconhecimento da importância dos atiradores senegaleses, marroquinos, argelinos e tunisianos para a liberação da França da ocupação alemã demorou várias décadas. Alguns especialistas, como o historiador Pascal Blanchard, da Sorbonne, estimam que até hoje a França não presta uma homenagem justa a esses homens, à altura do que eles fizeram pela liberdade dos franceses.
Até os anos 2000, os dirigentes franceses ocultaram o papel dos soldados africanos e de ex-colônias do Índico e do Pacífico na vitória dos aliados contra o Exército de Hitler. Blanchard, especialista no império colonial francês, observa que sempre que o Estado fazia referência ao desembarque de tropas aliadas nas comemorações oficiais, as imagens exibidas eram da Normandia, em junho de 1944, que envolveu uma maioria de soldados brancos – americanos, canadenses e britânicos. “Poucos africanos integraram divisões que liberaram Paris, enquanto nas praias da Provença as tropas eram negras”, disse em entrevista à RFI.
Atirador marroquino com uniforme de combate
“Era preciso mostrar que a França se liberou por si mesma, com soldados brancos”, afirmou o historiador. Essa postura de encobrir a participação crucial dos ex-colonos na Segunda Guerra só mudou a partir de 2004. O então presidente Jacques Chirac declarou, pela primeira vez, durante as comemorações do 60° Desembarque da Provença, que os soldados das ex-colônias tiveram “uma atuação magnífica nos combates para nossa liberação”. Na cerimônia realizada em Toulon, Chirac reconheceu que eles “pagaram um preço alto pela vitória”. Superado esse “esquecimento”, os presidentes Nicolas Sarkozy e François Hollande passaram a convidar líderes africanos para a ocasião. No caso de Emmanuel Macron, quase houve um retrocesso.
Inicialmente, o Palácio do Eliseu não havia previsto uma celebração especial neste 75° aniversário. Mas em julho, Blanchard e outras 22 personalidades, incluindo escritores, jornalistas e historiadores, publicaram um artigo no jornal Le Monde criticando o descaso do governo com esse fato histórico. Após a publicação, Macron admitiu que houve um descuido e se comprometeu a organizar e participar pessoalmente da cerimônia. Blanchard apreciou a reatividade do chefe de Estado.
Cerimônia no sul
O presidente da Costa do Marfim, Alassane Ouattara, e da Guiné, Alpha Condé, participaram do 75° aniversário celebrado nesta quinta, nos arredores de Saint-Raphael (sul), ao lado de Macron. Sarkozy também estava entre os convidados. A comemoração aconteceu na necrópole de Boulouris, onde estão sepultados os corpos de 464 combatentes.
O escritor senegalês David Diop fez um discurso em homenagem aos atiradores senegaleses, lembrando que muitos deles foram massacrados pelos nazistas de maneira ainda mais violenta por serem negros. “Todos deram prova de coragem e de bravura fora do comum, pagando caro pela vitória que ajudaram a conquistar”, declarou Macron. O presidente da Guiné assinalou que os soldados africanos dividiram com os franceses o sangue e o suor dos últimos combates da Segunda Guerra Mundial. “O Desembarque da Provença faz parte de uma memória coletiva compartilhada pelos povos francês e africano para salvar a liberdade”, concluiu.
Os presidentes da Guiné, França e Costa do Marfim participam da homenagem aos soldados que participaram do Desembarque da Provença, em cerimônia realizada em Boulouris.
Convidado para a cerimônia, Jacky Klingère, filho de um militar argelino, contou à reportagem da RFI que seu pai desembarcou na localidade de Saint-Maxime, depois de chegar ao litoral da França a bordo de um cargueiro com americanos. “Ele anotou diariamente o que fazia num pequeno caderno que guardo até hoje. Meu pai subiu do Mediterrâneo até Colmar (leste), ao lado de outros combatentes.”
Para o cineasta e historiador Éric Deroo, mais importante do que a França demonstrar arrependimento por ter passado décadas sem reconhecer o papel dos soldados africanos na vitória sobre o nazismo, é realizar um trabalho de fundo na sociedade.
“Temos uma história em comum com as ex-colônias. A questão não é permanecer numa rivalidade pela memória. O que pode ajudar a fortalecer essa identidade comum é fazer filmes, teses de pesquisa e criar museus para informar os jovens e as futuras gerações sobre a participação das tropas africanas para a liberação da França”, disse Deroo à rádio France Info.
A ofensiva militar
Dois meses depois do desembarque aliado na Normandia, iniciado em 6 de junho de 1944, a “Operação Dragão” teve o objetivo de enfrentar as tropas alemãs entrincheiradas em Toulon e desbloquear o acesso aos portos franceses do Mediterrâneo. A estratégia era ocupar uma área entre as cidades de Bormes e Saint-Raphael, para escapar do fogo inimigo, e sem seguida reconquistar Marselha e Toulon.
A ofensiva militar dos aliados ocorreu em duas etapas. Em uma primeira campanha aérea, 5 mil soldados paraquedistas foram lançados ao longo de uma rodovia com o objetivo de isolar os alemães. Na sequência, uma frota de 220 navios americanos e britânicos, vindos do norte da África, da Córsega e do sul da Itália, desembarcou dezenas de milhares de soldados nas praias do Var.
Soldados nativos de zonas tribais do Marrocos, que integravam um regimento de infantaria das forças aliadas, desfilam após a reconquista do porto de Marselha, em agosto de 1944.
Ao todo, 350.000 combatentes aliados foram mobilizados para enfrentar os 250 mil homens do exército inimigo espalhados na região. Mas os alemães ofereceram pouca resistência e se renderam, sob as ordens de Hitler. No dia 21 de agosto, com a ajuda dos africanos, as cidades de Aix-en-Provence, Arles e Avignon foram reconquistadas. Tropas francesas e americanas liberaram em seguida Toulon, Marselha, Cannes e Nice. Em 14 dias, o sul da França estava livre dos nazistas.
Fonte: RFI Brasil
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