"No próprio dia da batalha, as verdades podem ser pinçadas em toda a sua nudez, perguntando apenas;
porém, na manhã seguinte, elas já terão começado a trajar seus uniformes."

(Sir Ian Hamilton)



quinta-feira, 15 de agosto de 2019

O INTERCÂMBIO CULTURAL ENTRE OS SOLDADOS NA GUERRA DA CRIMEIA

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Inimigos no campo de batalha, oficiais russos e seus adversários não perdiam oportunidade de se comunicar durante os momentos de trégua.

Por Yuri Ossokin


A guerra da Crimeia, que ocorreu há 160 anos, no início de setembro de 1854, foi o primeiro conflito em que a Rússia foi confrontada pela Inglaterra, que lutou em uma coligação com a França e a Turquia. No nível político, os países eram inimigos, mas para os indivíduos que lutaram no conflito a guerra não era razão para esquecer as boas maneiras e a cortesia. Os oficiais russos falavam inglês e francês, o que permitia a comunicação civilizada fora de combate entre aqueles que no dia seguinte voltavam a ser inimigos irreconciliáveis.

O cerco de Sebastopol foi, além de um combate do Exército russo contra a coligação franco-inglesa, um encontro de culturas diferentes. Sendo inimigos no campo de batalha, os russos e seus adversários não perdiam oportunidade de se comunicar nos acampamentos militares, durante os momentos de trégua. O jornalismo de guerra, o gorro balaclava, o sobretudo raglan e o casaco cardigan surgiram durante o cerco de Sebastopol.


“É a vontade de Deus” 

Após o bombardeamento de Odessa pela esquadra franco-inglesa, a fragata britânica Tigre, cuja missão era bloquear a cidade, encalhou em um nevoeiro espesso na entrada do porto. A tripulação de 225 oficiais e marujos foi aprisionada e alojada em Odessa. Mais tarde, por ordem do imperador russo Nicolai I, a tripulação foi mandada para casa. Em Odessa, os prisioneiros viviam em excelentes condições,  sob a constante atenção da população local. Tudo isto foi descrito em suas cartas para familiares e amigos. Um marinheiro relatou: “Um dia, sob a bandeira de trégua, veio ter conosco um oficial russo de idade. Fez uma saudação para um grupo de soldados ingleses e partilhou com eles o rapé. Depois de beber rum com os nossos, disse a um oficial britânico: ‘Os russos gostam muito de ingleses e, se pudessem, nunca entrariam em guerra convosco. Pelo visto, é a vontade de Deus’”. 

Soldados russos na Crimeia


Enquanto os oficiais se comportavam como cavalheiros, sobre os soldados não se podia dizer o mesmo. Para os simples soldados russos, ao contrário dos oficiais de educação europeia, os ingleses e franceses eram intrusos, encarados como ocupantes que deviam ser expulsos a todo custo. “Testemunhei um caso repugnante: um jovem oficial inglês deu a um ferido russo um gole de brandy de seu cantil; mal lhe virou as costas para ir embora, levou um tiro fatal do soldado impassível”, recordou em uma carta Timothi Gowing, atirador real.

Mas os soldados dos aliados tampouco eram exemplos de civilização. Chacotas e torturas eram bastante frequentes, e nisso se empenhavam sobretudo os franceses, endurecidos pela guerra contra os selvagens na  Argélia. Caffir, criado do capitão Clifford, contava com uma sinceridade aterrorizante que para ele o  maior prazer era passear pelo campo depois da batalha, contemplando corpos mutilados de soldados inimigos, que lhe lembravam “maçãs no quintal”. Uma vez, voltou carregado de sabres e capacetes russos, murmurando: “Ai que bom! Tantos mortos! Braços e pernas por todo lado. São inimigos de meu senhor”.


Heranças da guerra 

A guerra da Crimeia deixou influências nas línguas dos países beligerantes e na área de vestuário. Em inglês, até hoje existe o termo “balaclava”, que designa um gorro de malha com orifícios para olhos e nariz. Reza a lenda que este termo foi introduzido pelos soldados britânicos que não tinham vestimentas adequadas no inverno de 1854–1855 e passavam muito frio nos arredores da cidade de Balaclava, na Crimeia. Outro exemplo conhecido é um sobretudo com mangas de corte especial chamado de raglan, que costumava ser usado por Fitzroy Somerset, primeiro barão Raglan, comandante das forças britânicas, que tentava ocultar deste modo a falta do braço direito, perdido ainda na juventude durante a batalha de Waterloo. Mais uma peça de roupa – uma blusa de malha com botões e sem gola – foi batizada de cardigan, em memória de James Brudenell, sétimo conde de Cardigan, que gostava de vestir a blusa por baixo da farda durante o inverno. Os habitantes da Europa tinham bastante frio na Crimeia.

Soldados britânicos em um acampamento na Crimeia


Segundo uma lenda popular, foi durante a guerra da Crimeia que surgiram os “papirossi”: tanto os aliados como os russos adotaram um hábito turco de fazer uma espécie de cigarro enchendo de tabaco cartuchos de papel para pólvora.


Tratado de paz

No final de 1855, os participantes do conflito começaram a perceber que não valia a pena continuar lutando. Perdas enormes (apenas nos arredores de Sebastopol, os aliados perderam cerca de 90 mil soldados, sem contar com os que morreram de doenças) viravam as sociedades francesa e inglesa contra a guerra, e a Rússia também estava em uma situação difícil. Na sequência de conversações, foi assinado o Tratado de Paz de Paris, em 18 de março de 1856. Todos os grandes Estados tiveram que chegar a um compromisso, porque o balanço de forças na Europa não mudou após a guerra, nem foram resolvidas as questões que provocaram o conflito. Lamentavelmente, passados 60 anos, em 1914 os mesmos problemas voltaram a provocar um conflito armado, que ficou conhecido como Primeira Guerra Mundial. 

Fonte: Gazeta Russa


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