Apesar de desafios impostos por conflitos como os da Síria e do Iêmen, conjunto de tratados que visam condenar crimes de guerra e proteger civis são amplamente respeitados mundo afora.
Por Martin Kübler
Em 2024, quase sete décadas e meia após a adoção da Convenção de Genebra, os tratados que "contêm as principais regulamentações que limitam a barbárie da guerra", segundo afirma o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), não parecem conseguir impor grandes limitações.
Nos oito anos da brutal guerra civil na Síria, as forças militares do regime, apoiadas pela Rússia, "vêm propositalmente atingindo populações e instituições civis nas áreas controladas pela oposição armada", afirma Kenneth Roth, diretor-executivo da ONG Human Rights Watch, constituindo o que ele classifica como uma "flagrante afronta à Convenção de Genebra"
No Iêmen, a coalizão liderada pela Arábia Saudita "bombardeia repetidamente alvos civis [...] atingindo funerais, mercados, mesquitas e até um ônibus escolar". Além disso, o tratamento do exército de Myanmar à minoria rohingya – descrito pela Anistia Internacional em maio como "execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, tortura e outros maus tratos e desaparições forçadas" – seria, em essência, uma "limpeza étnica", segundo Roth.
Esses acontecimentos, todos eles sérias violações das leis humanitárias internacionais sob as normas estabelecidas pela Convenção de Genebra, estão longe de serem os únicos exemplos que dominam as manchetes na imprensa.
Helen Durham, ex-advogada dos direitos humanos e diretora de leis e políticas humanitárias do CICV afirma que sua organização observa com regularidade violações à Convenção nos lugares mais perigosos do mundo, e as reconhece como "algo inaceitável".
"O fato de a lei ser violada não a torna menos relevante", diz Durham. "Há muitos, muitos casos onde as leis de guerra fazem, na verdade, uma grande diferença, e conseguem prover dignidade e humanidade na guerra."
Proteção de civis dos horrores da guerra
A Convenção de Genebra, composta por quatro tratados internacionais que visam proteger indivíduos não envolvidos nos conflitos – civis, médicos, prisioneiros de guerra e soldados fora de combate – foi adotada em 12 de agosto de 1949, após prolongadas discussões.
A Convenção original, que abarcava a "melhora das condições dos feridos nos exércitos nos campos de batalha", foi inicialmente adotada em 1864, acatando uma proposta de Henry Durant, o fundador do CICV.
Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, o CICV elaborou tratados adicionais que visavam expandir essas proteções também aos civis que se viam em meio aos combates, mas os governos se recusaram a aceitar esse comprometimento. Como resultado, não havia nenhum tratado específico para sua proteger os civis dos horrores da guerra que acabaria por sacrificar milhões de vidas.
Assinatura da ampliação e revisão da Convenção de Genebra em 12 de agosto de 1949
Em resposta, os potências mundiais, com a memória ainda fresca das atrocidades da guerra, concordaram em revisar e atualizar as convenções, acrescentando um quarto tratado para proteger os civis em tempos de conflito. Outra revisão importante ocorreu em 1977, com o acréscimo de dois protocolos que reforçam a proteção às vítimas de conflitos armados internacionais e domésticos, incluindo guerras civis.
Até hoje as convenções foram ratificadas por 196 países, incluindo todos os Estados-membros da ONU e observadores como a Autoridade Palestina, última a aderir à Convenção, em 2014.
Durham lembra que, durante as sete décadas, foi acrescentada à Convenção uma "vasta expansão e atualização" de tratados específicos no que se refere a armas, com acordos internacionais que proíbem as minas terrestres, armas químicas e bombas de fragmentação, entre outras.
Segundo ela, terão papel cada vez maior nos desdobramentos futuros os "novos desafios", como guerras cibernéticas, armas autônomas e inteligência artificial, além de apleos para que sejam considerados os danos ambientais das guerras.
Falta de aplicação dos tratados
Embora casos graves como os da Síria e Myanmar pareçam indicar o contrário, hoje em dia há apenas um punhado de lugares no mundo onde a Convenção de Genebra não é observada.
"Não estamos falando de um desrespeito global ou de um padrão de desrespeito", disse o presidente do CICV, Peter Maurer, em discurso no Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos de Washington. Ele destacou "centenas e milhares de situações onde a lei é respeitada".
"Quando um ferido tem a passagem permitida num ponto de controle, quando uma criança nas frentes de batalha recebe alimento e outras ajudas humanitárias, e quando as condições dos presos são melhoradas ou quando eles podem ter contato com suas famílias, sabemos que a lei humanitária internacional está sendo respeitada", frisou Maurer. "Ninguém realmente coloca em dúvida a essência da Convenção de Genebra", disse Roth à DW. "Ninguém afirma que seja certo mirar civis ou atirar indiscriminadamente. Essas são normas básicas, proibições básicas cuja infração é entendida universalmente com constituindo crimes de guerra."
"A lei, por si só, não precisa ser atualizada, ela é muito clara", afirma Durham, reconhecendo a necessidade de uma maior "pressão política, globalmente, sobre todas as partes nos conflitos", para assegurar que a aplicação das normas.
O problema nos dias de hoje, reforça Roth, não é a ambiguidade ou falta de especificações nas regras. Ao contrário, está nos governos que ignoram as regulamentações, assim como na falta de aplicação e de supervisão internacional.
Brechas legais
Roth destaca que, com frequência, os governos relutam em levar seus próprios criminosos de guerra à Justiça. No entanto a comunidade internacional vem encontrando caminhos, contornando essas brechas legais, para responsabilizar judicialmente os que violam os tratados.
"O surgimento de cortes internacionais como o Tribunal Penal Internacional [TPI, em 2002] é uma resposta a esse problema", diz o diretor da HRW. "A Síria representa um verdadeiro desafio; devido à dimensão das atrocidades, seria natural levar o país ao TPI. Mas esse processo foi bloqueado por vetos da Rússia e, por vezes, da China, no Conselho de Segurança da ONU [...] e se tornou necessário encontrar outros caminhos para a responsabilização."
Uma dessas alternativas, diz Roth, vem sendo a Assembleia Geral da ONU – organismo no qual não há possibilidade de veto –, que em 2016 votou amplamente a favor da criação de uma unidade imparcial internacional para investigar as violações na Síria, "basicamente, um promotor para crimes de guerra sírios sem um tribunal".
Mais ainda, alguns países europeus também decidiram fazer uso de um princípio da lei internacional chamado de jurisdição universal para começar a processar judicialmente criminosos de guerra em terras estrangeiras, ao contrário das relutantes autoridades nacionais. "A Alemanha e a França estão na vanguarda da busca de condenações a criminosos de guerra sírios", lembra Roth. "Francamente, não há alternativa no momento."
Fonte: Adaptado a partir de DW
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