"No próprio dia da batalha, as verdades podem ser pinçadas em toda a sua nudez, perguntando apenas;
porém, na manhã seguinte, elas já terão começado a trajar seus uniformes."

(Sir Ian Hamilton)



sábado, 25 de junho de 2016

ENTREVISTA - REPRESENTANTE DO GOVERNO PARAGUAIO FALA SOBRE 150 ANOS DA GRANDE GUERRA E DOR DE TODO UM PAÍS






Rocio Ortega esteve em Campo Grande para evento sobre os 150 anos da Guerra do Paraguai


Representando a Secretaria Nacional de Cultura do Paraguai, Rocio Ortega, é assessora da comissão do senado que criou a lei 5.529/2015, que instaurou a Comissão Nacional para a Comemoração do Sesquicentenário da Epopeia Nacional, que tem o objetivo de estabelecer ações que expressam uma política nacional de comemoração em lembrança aos 150 anos desde a Guerra do Paraguai, e contribuir para a reafirmação de uma nação heroica, livre e independente.

A comissão foca no desenvolvimento de uma agenda de trabalho que inclui, entre outras coisas, a análise da abordagem educacional da Tríplice Aliança em diferentes países, a reedição de materiais de biblioteca alusiva ao tema, a valorização dos sítios e ações históricas, além de outras ações que envolvam a população para resgatar o sentido das comemorações, respeitando a memória coletiva do povo.

Em Campo Grande, Rocio Ortega apresentou o livro ‘Más Allá de la Guerra’, em português, ‘Mais Além da Guerra’, durante o III Encontro do Grupo de Pesquisa Historiografia e Ensino de História, realizado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), relembrando esse momento importante na história do Brasil e Paraguai. Leia a entrevista, na íntegra:

Do que se trata o projeto e como ele surgiu?

Para recordar 150 anos desta guerra e iniciativa da secretaria nacional da cultura para consagrar as políticas públicas paraguaias e pensamos no projeto além da guerra, que começou a tomar forma em 2014, que se instalou como um projeto do Mercosul cultural e que foi acertada durante uma reunião de ministros da cultura do Mercosul. E aí no ano passado saiu essa lei 5.529. Isso para incentivar uma série de ações, com vigência até 2020, que se cumprem 150 anos, cobrindo os cinco anos que correspondem as recordações.

Esse trabalho é mostrar além da guerra, como o próprio título explica. Além de uma data precisa, além de uma estratégia militar, além da quantidade de mortos, isso é a história da guerra, que pretende ir a uma memória maior. Por exemplo, qual foi o impacto social ao povo paraguaio e o que isso influi na sua relação com outros países.

Porque consideramos que a guerra resulta em uma memória que se fragmenta e se traduz em muito sentimento, que o Paraguai principalmente ainda sente muito, não terminou de compreender e, portanto, não terminou de perdoar seus agressores. Então é muito facilmente observado quando estamos em um momento político complicado, em que o Paraguai tem uma reação complicada.

Precisamos perdoar o agressor, nos integrar mais no mercado do Mercosul. Essa ferida não é curada se essa memória não for compreendida.  Consideramos que a guerra foi a última estratégia de fragmentação da colônia, porque havia muito medo que ficássemos todos juntos, porque juntos éramos uma força muito grande e, na época, muito perigosa. Então a guerra foi parte de uma estratégia para deixar fragmentada a América do Sul, e isso resultou em muita dor para o Paraguai.

No Brasil é mais esquecida a memória da guerra?

Acho que sim, porque o brasileiro recorda apenas que foi um fato na região de fronteira. Além de outras regiões que não são da fronteira, há alguma memória material em São Paulo ou Rio de Janeiro, mas não muito além. Na maior parte das outras regiões do país ninguém sabe o que aconteceu, não é difundido.

E como é revivida essa lembrança no cotidiano paraguaio? As escolas dão forte ênfase nesse capítulo do país? No Paraguai, esse é um dos principais elementos presentes nas aulas de história nas escolas, o discurso da nacionalidade é muito mais presente. Você não é paraguaio se não sabe da guerra da trípice aliança. Você não é paraguaio se não se relaciona com as histórias de quem o feriu, é sempre lembrado que o brasileiro nos ficou cerceando após a guerra, a todo tempo é incentivada essa lembrança para que se fique, de certa forma, bravo com seus vizinhos. É um sentimento muito, muito forte. Para o paraguaio médio, por exemplo, ir a uma partida de futebol contra o Brasil é quase como ir à guerra novamente.

Existe certo preconceito, talvez, um bairrismo de brasileiros com paraguaios. Você vê isso como reflexo daquela época também?

Não, acho que não precisamente da guerra, pois o Brasil tem uma extensão quase continental, é natural que ele se sinta maior, superior a países menores. Nem mesmo comercialmente, é mais uma questão cultural e relacionada mais com o funcionalismo paraguaio, que deve partir de nós. Porque senão o paraguaio vai ficar em paz para fazer os seus verdadeiros laços de amizade e colaboração, porque esse discurso de embate está muito presente nos discursos referentes às relações exteriores.

Se você fala isso que estou falando dentro de um curso de relações internacionais no Paraguai, vão lhe tratar como uma espécie de traidor da pátria. Mas não é isso, apenas é fundamental que a história seja desmontada e compreendida novamente.

Existem algumas teorias da filosofia que dizem que não se termina a dor da pessoa que carrega melancolia, e a melancolia é uma tristeza profunda que não lhe permite avançar. Isso passa dos mais velhos aos mais jovens e há uma noção geral de que paraguaios são vítimas, como ‘eu sou pobre porque fui traído pelos meus vizinhos, me levaram tudo e mataram todos, o país perdeu suas riquezas’. Esse é um discurso que comumente justifica certo retrato do país.

Como foi feito o trabalho desse projeto, especificamente do livro?

O livro não é a primeira ação do projeto, mas o primeiro objeto. Foram impressos mil exemplares primeiramente, que já acabaram e foi necessária uma segunda impressão. Ele é distribuído gratuitamente e é uma coletânea de 12 artigos que compreendem vários aspectos diferentes sobre a guerra, a partir de estudos feitos por historiadores, pesquisadores. São observados essencialmente três eixos fundamentais, o político, econômico e social daquele tempo, quando estavam nascendo os países sul-americanos como nações independentes.

Para o Paraguai, isso significou a destruição de uma incipiente configuração de estado Alguns capítulos tratam sobre o recomeço das instituições econômicas, a entrada e a proibição da entrada do capital estrangeiro no Paraguai, como foi com a França por muitas décadas. Se fala também sobre a entrada de grandes empresas estrangeiras no país, que compraram grande latifúndio, que resultou na pobreza do povo camponês, que era proprietário dessas pequenas terras e perdeu-as. Também consta a participação do povo indígena na guerra, qual foi o papel.

Há capítulos também que tratam das consequências da guerra em instituições sociais e no imaginário simbólico do povo, que é como o povo pensa sobre isso e expõe sua nacionalidade.

Foi difícil ter acesso a arquivos sobre a guerra? Muito do que foi registrado foi perdido ou houve reocupação em se conservar acervos?

Muita memória foi apagada, mas temos muitos documentos ainda, a vontade e abertos ao acesso. Porém, a vontade de trazer isso a tona. Os primeiros historiadores políticos não construíram artigos a partir dos arquivos nacionais, e não uma história rica acadêmica. Hoje, historiadores estão indo mais frequentemente a essas fontes certas.

Que outros reflexos da história deixaram o povo paraguaio com esse sentimento  de melancolia mais forte?

A cultura, logicamente, se fortalece quando a mulher sobrevive como a reprodutora dessa cultura, mas foi entregada como moeda de câmbio para outras nações. Houve uma grande imigração de estrangeiros, italianos e espanhóis, para tentar se apagar a identidade do paraguaio, de iniciativa do próprio governo paraguaio. Se proibiu o uso do guarani, nas ruas e nas escolas, porque a condição não era só terminar com as raízes e servir ‘dominadores’, países mais fortes, mas de maneira forçada. Há muitos registros que essas mulheres, abortavam muito, isso é muito forte.  Havia um preconceito enorme com o nosso sangue.

Porém, a mulher do Paraguai era obrigada a ter o filho, mas ele ficava no colo dela. Então o espanhol acabava falando guarani e entrando dentro do universo simbólico paraguaio que envolve a linguagem. Aí nasce o forte sentimento de nacionalidade, porque apesar de ter sangue mestiço, sua história é ali.

Quais as ações futuras do projeto?

Pretendemos fazer não somente mais livros, em português, guarani e castelhano, mas filmes, livros didáticos para escolas, restauração de locais históricos e monumentos, e até mesmo compra de coleções paraguaias que estão no exterior e que devem estar no Paraguai. Temos muitas coisas que queremos fazer.

Fonte: Topmídianews. Entrevista concedida a Amanda Amaral.


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Um comentário:

  1. Interessante... porém tenho uma curiosidade tremenda pra saber o conteúdo guardado como Ultra Secreto pelo Governo Brasileiro sobre a Guerra do Paraguai. Parece existir uma preocupação em esconder algo, nossa história sempre fica assim incompleta, infelizmente (ou felizmente).

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