No Natal de 1914, em plena Primeira Guerra Mundial,
soldados ingleses e alemães deixaram as trincheiras e fizeram uma
trégua. Durante seis dias, eles enterraram seus mortos, trocaram
presentes e jogaram futebol
Por Bruno Leuzinger
Finalmente parou de chover. A noite está clara, com céu limpo,
estrelado, como os soldados não viam há muito tempo. Ao contrário da
chuva, porém, o frio segue sem dar trégua. Normal nesta época do ano. O
que não seria normal em outros anos é o fedor no ar. Cheiro de morte,
que invade as narinas e mexe com a cabeça dos vivos – alemães e
britânicos, inimigos separados por 80, 100 metros no máximo. Entre eles
está a “terra de ninguém”, assim chamada porque não se sobreviveria ali
muito tempo. Cadáveres de combatentes de ambos os lados compõem a
paisagem com cercas de arame farpado, troncos de árvores calcinadas e
crateras abertas pelas explosões de granadas. O barulho delas é
ensurdecedor, mas no momento não se ouve nada. Nenhuma explosão, nenhum
tiro. Nenhum recruta agonizante gritando por socorro ou chamando pela
mãe. Nada.
E de repente o silêncio é quebrado. Das trincheiras alemãs, ouve-se
alguém cantando. Os companheiros fazem coro e logo há dezenas, talvez
centenas de vozes no escuro. Cantam “Stille Nacht, Heilige Nacht”.
Atônitos, os britânicos escutam a melodia sem compreender o que diz a
letra. Mas nem precisam: mesmo quem jamais a tivesse escutado
descobriria que a música fala de paz. Em inglês, ela é conhecida como
“Silent Night”; em português, foi batizada de “Noite Feliz”. Quando a
música acaba, o silêncio retorna. Por pouco tempo.
“Good, old Fritz!”, gritam os britânicos. Os “Fritz” respondem com
“Merry Christmas, Englishmen!”, seguido de palavras num inglês
arrastado: “We not shoot, you not shoot!”(“Nós não atiramos, vocês
também não”).
Estamos em algum lugar de Flandres, na Bélgica, em 24 de dezembro de
1914. E esta história faz parte de um dos mais surpreendentes e
esquecidos capítulos da Primeira Guerra Mundial: as confraternizações
entre soldados inimigos no Natal daquele ano. Ao longo de toda a frente
ocidental – que se estendia do mar do Norte aos Alpes suíços, cruzando a
França –, soldados cessaram fogo e deixaram por alguns dias as
diferenças para trás. A paz não havia sido acertada nos gabinetes dos
generais; ela surgiu ali mesmo nas trincheiras, de forma espontânea.
Jamais acontecera algo igual antes. É o que diz o jornalista alemão
Michael Jürgs em seu livro Der Kleine Frieden im Grossen Krieg –
Westfront 1914: Als Deutsche, Franzosen und Briten Gemeinsam Weihnachten
Feierten (“A Pequena Paz na Grande Guerra – Frente Ocidental 1914:
Quando Alemães, Franceses e Britânicos Celebraram Juntos o Natal”,
inédito no Brasil).
Conhecido então como Grande Guerra (pouca gente imaginava que uma
segunda como aquela seria possível), o conflito estourou após a morte do
arquiduque Francisco Ferdinando. Herdeiro do trono do Império
Austro-Húngaro, ele e sua esposa Sofia foram assassinados em Sarajevo,
na Sérvia, no dia 28 de junho. O atentado, cometido por um estudante,
fora tramado por um membro do governo sérvio. Um mês mais tarde, em 28
de julho, a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia. As nações
europeias se dividiram. Grã-Bretanha, França e Rússia se aliaram aos
sérvios; a Alemanha, aos austro-húngaros. Nas semanas seguintes, os
alemães invadiram a Bélgica, que até então se mantivera neutra, e, ainda
em agosto, atravessaram a fronteira com a França. Chegaram perto de
tomar Paris, mas os franceses os detiveram, em setembro.
Nos primeiros meses, a propaganda militar conseguiu inflar o orgulho
dos soldados – de lado a lado. O fervor patriótico crescia paralelamente
ao ódio pelos inimigos. Entretanto, em dezembro o moral das tropas já
despencara. A guerra se arrastava havia quase um semestre. Os britânicos
haviam perdido 160 mil homens até então; Alemanha e França, 300 mil
cada. Para piorar, as condições nas trincheiras eram péssimas. O odor
beirava o insuportável, devido às latrinas descobertas e aos corpos em
decomposição. Estirados pela terra de ninguém, cadáveres atraíam
ratazanas aos milhares. Era um verdadeiro banquete. Com tanta carne,
elas engordavam tanto que algumas eram confundidas com gatos. Pior que
as ratazanas, só os piolhos. Milhões deles, nos cabelos, barbas,
uniformes. Em toda parte.
Quando chovia forte, a água batia na altura dos joelhos. Dormia-se em
buracos escavados na parede e era comum acordar assustado no meio da
noite, por causa das explosões ou de uma ratazana mordiscando seu rosto.
Durante o dia, quem levantasse a cabeça sobre o parapeito era um homem
morto. Os franco-atiradores estavam sempre à espreita (no final da
tarde, praticavam tiro ao alvo no inimigo e, quando acertavam, diziam
que era um “beijo de boa-noite”). O soldado entrincheirado passava
longos períodos sem ter o que fazer. Horas e horas de tédio sentado no
inferno. Só restava esperar e olhar para céu – onde não havia ratazanas
nem cadáveres.
Soldados alemães e britânicos deixam-se fotografar juntos em uma das tréguas
O cotidiano de horrores foi minando a vontade de lutar. Uma semana
antes do Natal já havia sinais disso. Foi assim em Armentières, na
França, perto da fronteira com a Bélgica. Soldados alemães arremessaram
um pacote para a trincheira britânica. Cuidadosamente embalado, trazia
um bolo de chocolate e dentro, escondido, um bilhete. Os alemães pediam
um cessar-fogo naquela noite, entre 19h30 e 20h30. Era aniversário do
capitão deles e queriam surpreendê-lo com uma serenata. O bolo era uma
demonstração de boa vontade. Os britânicos concordaram e, na hora da
festa inimiga, sentaram no parapeito para apreciar a música. Aplaudidos
pelos rivais, os alemães anunciaram o encerramento da serenata – e da
trégua – com tiros para cima. Em meio à barbárie, esses pequenos gestos
de cordialidade significavam muito.
Ainda assim, era difícil imaginar o que estava por vir. Na noite do
dia 24, em Fleurbaix, na França, uma visão deixou os britânicos
intrigados: iluminadas por velas, pequenas árvores de Natal enfeitavam
as trincheiras inimigas. A surpresa aumentou quando um tenente alemão
gritou em inglês perfeito: “Senhores, minha vida está em suas mãos.
Estou caminhando na direção de vocês. Algum oficial poderia me encontrar
no meio do caminho?” Silêncio. Seria uma armadilha? Ele prosseguiu:
“Estou sozinho e desarmado. Trinta de seus homens estão mortos perto das
nossas trincheiras. Gostaria de providenciar o enterro”. Dezenas de
armas estavam apontadas para ele. Mas, antes que disparassem, um
sargento inglês, contrariando ordens, foi ao seu encontro. Após minutos
de conversa, combinaram de se reunir no dia seguinte, às 9 horas da
manhã.
No dia seguinte, 25 de dezembro, ao longo de toda a frente ocidental,
soldados armados apenas com pás escalaram suas trincheiras e
encontraram os inimigos no meio da terra de ninguém. Era hora de
enterrar os companheiros, mostrar respeito por eles – ainda que a morte
ali fosse um acontecimento banal. O capelão escocês J. Esslemont Adams
organizou um funeral coletivo para mais de 100 vítimas. Os corpos foram
divididos por nacionalidade, mas a separação acabou aí: na hora de
cavar, todos se ajudaram. O capelão abriu a cerimônia recitando o salmo
23. “O senhor é meu pastor, nada me faltará”, disse. Depois, um soldado
alemão, ex-seminarista, repetiu tudo em seu idioma. No fim, acompanhado
pelos soldados dos dois países, Adams rezou o pai-nosso. Outros enterros
semelhantes foram realizados naquele dia, mas o de Fleurbaix foi o
maior de todos.
Aquela situação por si só já era inusitada: alemães e britânicos
cavando e rezando juntos. Mas o que se viu depois foi um desfile de
cenas surreais. Em Wez Macquart, França, um britânico cortava os cabelos
de qualquer um – aliado ou inimigo – em troca de alguns cigarros. Em
Neuve Chapelle, também na França, os soldados indicavam discretamente
para seus novos amigos a localização das minas subterrâneas. Em Pervize,
na Bélgica, homens que na véspera tentavam se matar agora trocavam
presentes: tabaco, vinho, carne enlatada, sabonete. Uns disputavam
corridas de bicicleta, outros caçavam coelhos. Uma luta de boxe entre um
escocês e um alemão foi interrompida antes que os dois se matassem.
Alguém sugeriu um duelo de pistolas entre um alemão e um inglês, mas a
idéia foi rechaçada – afinal, aquilo era um cessar-fogo.
O jornal britânico The Daily Mirror registrou a trégua em primeira página
Porém, o melhor estava por vir. Nos dias 25 e 26, foram organizadas
animadas partidas de futebol. Centenas jogaram bola nos campos de
batalha. “Bola” em muitos casos era força de expressão; podia ser apenas
um monte de palha amarrado com arame, ou uma lata de conserva vazia. E,
no lugar de traves, capacetes, tocos de madeira ou o que estivesse à
mão. Foi assim em Wulvergem, na Bélgica, onde o jogo foi só pelo prazer
da brincadeira, ninguém prestou atenção no resultado. Mas houve também
partidas “sérias”, com direito a juiz e a troca de campo depois do
intervalo. Numa delas, que se tornou lendária, os alemães derrotaram os
britânicos por 3 a 2. A vitória suada foi cercada de polêmica: o
terceiro gol alemão teria sido marcado em posição irregular (o atacante
estava impedido) e a partida, encerrada depois que a bola – esta de
verdade, feita de couro – furou ao cair no arame farpado.
A maioria das confraternizações se deu nos 50 quilômetros entre
Diksmuide (Bélgica) e Neuve Chapelle. Os soldados britânicos e alemães
descobriam ter mais em comum entre si que com seus superiores –
instalados confortavelmente bem longe da frente de batalha. O medo da
morte e a saudade de casa eram compartilhados por todos. Já franceses e
belgas eram menos afeitos a tomar parte no clima festivo. Seus países
haviam sido invadidos (no caso da Bélgica, 90 por cento de seu
território estava ocupado), para eles era mais difícil apertar a mão do
inimigo. Em Wijtschate, na Bélgica, uma pessoa em particular também
ficou muito irritada com a situação. Lutando ao lado dos alemães, o
jovem cabo austríaco Adolf Hitler queixava-se do fato de seus
companheiros cantarem com os britânicos, em vez de atirarem neles.
Naquele tempo, Hitler ainda não apitava nada. Entretanto, os homens
que davam as cartas também não estavam nem um pouco felizes. Dos
quartéis-generais, os senhores da guerra mandaram ordens contra qualquer
tipo de confraternização. Quem desrespeitasse se arriscava a ir à corte
marcial. A ameaça fez os soldados voltarem para as trincheiras. Durante
os dias seguintes, muitos ainda se recusavam a matar os adversários.
Para manter as aparências, continuavam atirando, mas sempre longe do
alvo. Na noite do dia 31, em La Boutillerie, na França, o fuzileiro
britânico W.A. Quinton e mais dois homens transportavam sua metralhadora
para um novo local, quando de repente ouviram disparos da trincheira
alemã. Os três se jogaram no chão, até perceberem que os tiros eram para
o alto: os alemães comemoravam a virada do ano.
A trégua velada resistiu ainda por um tempo. Até março de 1915,
alemães e britânicos entrincheirados em Festubert, na França, faziam de
conta que a guerra não existia – ficava cada um na sua. Mas a lembrança
das confraternizações foi aos poucos cedendo espaço para o ódio. A
carnificina recrudesceu, prosseguindo até a rendição da Alemanha, em
novembro de 1918, arrasando a Europa e deixando cerca de 10 milhões de
mortos. Talvez a matança até valesse a pena, se a profecia do escritor
de ficção científica H.G. Wells tivesse dado certo. O autor de A Máquina
do Tempo escrevera em um ensaio que aquela seria “a guerra que acabaria
com todas as guerras”. Wells, é claro, estava enganado. Os momentos de
paz, como os do Natal de 1914, seriam escassos também ao longo de todo o
século 20. A Grande Guerra tinha sido só o começo.
Fonte: Aventuras na História
.
Uma excelente história, que retrata de maneira tão singular, o quanto o ser humano pode ser benevolente, mesmo em campo de Batalha.
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