Demorou para o cinema americano se debruçar sobre a guerra que a TV transmitira em todos os seus detalhes mais atrozes. Mas, quando o fez, acrescentou à imagem um dado poderoso: a reflexão que essa distância autorizara
Por Isabela Boscov
É o fim, canta Jim Mossrison, enquanto as pás do ventilador no teto se confundem, no delírio de Martin Sheen, com as hélices dos helicópteros - e a selva que estes sobrevoam explode no fogo do napalm. Em outro lugar qualquer no Sudeste Asiático, uma bala atinge em cheio Willem Dafoe, que cai de joelhos, braços lançados para trás, como um mártir. Christopher Walken, com a alma despedaçada pelo combate, compulsivamente leva a arma à própria têmpora em rodadas de roleta-russa. Em algum ponto dos Estados Unidos, ainda antes do embarque, o recruta Vincent D'Onofrio, enlouquecido pela brutalidade de seu sargento, massacra-o. Tom Cruise, mutilado, na cadeira de rodas, ergue o punho cerrado em protesto. Jon Voight sofre no centro de reabilitação de veteranos. Treat Williams, de farda e cabeleira já aparada, segue em fila para dentro do avião, com pânico no olhar. São imagens tão icônicas, tão perenes, que quase nem e preciso identificar os filmes a que elas pertencem - a obra-prima Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, em que Sheen empreende uma jornada literalmente ate o coração das trevas em busca de Marlon Brando, o militar brilhante que enlouqueceu e se fez objeto de um culto selvagem; Platoon (1986), em que Oliver Stone recriou suas experiências excruciantes na selva vietnamita; o Franco-Alirador (1978), de Michael Cimino, sobre as feridas incicatrizáveis de um grupo de veteranos; Nascido para Matar (1987), de Stanley Kubrick, em que um sargento transforma um recruta no limite do retardamento mental em assassino (e que traz uma raríssima sequencia de combate urbano no Vietnã); Nascido em 4 de Julho (1989), também de Oliver Stone; Amargo Regresso (1978), de Hal Ashby; e Hair (1979), de Milos Forman, são ilustres entre as dezenas de filmes que compuseram um dos mais brilhantes ciclos do cinema americano - um ciclo bem menos prolífico que o dedicado à 2ª Guerra (este, aliás, não se encerrou nem dá mostras de se encerrar), mas em vários sentidos definitivo. Para Hollywood, a Guerra do Vietnã e o caso raro de tema que resultou não apenas em um conjunto de filmes, mas num apanhado crítico. Caso raro, porque foi ela mesma uma guerra única - insana, quente, úmida; enlameada, desesperada, repleta de atrocidades e drogas, movida a rock, e interminável.
Os Boinas Verdes, estrelado por John Wayne, foi uma exceção de conteúdo patriótico
É intrigante, no entanto, que, com as exceções solitárias de Os Boinas Verdes, de 1968 (estrelado por John Wayne e, portanto, de conteúdo decididamente patriótico), e do documentário Corações e Mentes, de 1974, que ganhou na história a estatura de divisor.de águas, apenas três anos depois de findo o conflito no Vietnã o cinema tenha começado a atacar de frente o assunto. Atacar, no caso, não é força de expressão: Hollywood foi virtualmente unânime na sua condenação da interferência militar dos Estados Unidos no Sudeste Asiático - pela carnificina que acarretou, pela dimensão de insanidade que adquiriu, pela truculenta conscrição de combatentes, pela discutível necessidade de ter sido ela iniciada, pela hostilidade e desprezo com que os veteranos, de volta a casa, se viam recebidos, em contraste com as honrarias dedicadas aos soldados da 2ª Guerra e da Guerra da Coreia. O curioso, no caso, e que desde muito cedo setores representativos do jornalismo e da opinião pública americanos se haviam colocado contra a guerra no Vietnã e protestado com veemência contra seu prosseguimento - por que, então, o cinema teria se demorado tanto até abordá-la?
Quanto mais claro ficava que a guerra no Vietnã era um atoleiro no qual não se encontraria uma vitória. - e, portanto, que ela consistia num sacrifício fútil de vidas -, mais incisiva se tornava sua cobertura. O que a ficção poderia acrescentar às imagens terríveis produzidas pelos fotógrafos e câmeras de TV, do morticínio dos soldados na lama à menina vietnamita nua, em desespero, com a pele desfolhada pelas bombas incendiarias de napalm? Só com a reflexão se poderia avançar em alguma medida sobre esse mosaico que o jornalismo produziu no decurso da guerra - e a reflexão demanda alguma distância. Em 1975, quando a Guerra do Vietnã terminou, os cineastas americanos precisaram de tempo para gestar suas reflexões sobre o conflito que cindira seu país e se revelara o mais desenganador do período de desilusão entre o assassinato de John Kennedy, em 1963, e a renúncia de Richard Nixon, em 1974. Mas usaram esse tempo para legar à sua geração, e às posteriores, imagens e personagens incanceláveis de uma guerra como nenhuma outra.
Fonte: Veja
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