No centenário do conflito, instituição ligada à UE roda o continente em busca de objetos de quem fez parte da história. Coleção inclui carta do então combatente Hitler a colega de trincheira.
Por Rodrigo Vizeu
Quando era pequeno, o alemão Markus Geiler, 46, sempre ouvia que só
existia graças à Bíblia. No caso, um exemplar específico, atravessado
por um estilhaço de obus e que salvou seu avô na Primeira Guerra
Mundial. A guerra eclodiu há cem anos, quando o herdeiro do
trono austro-húngaro, Francisco Ferdinando, foi morto por um
nacionalista sérvio, levando à escalada que envolveu a Europa e o mundo.
Aos 23 anos, o avô de Markus, o soldado alemão Kurt Geiler, lutava em
Verdun (França), uma das batalhas mais mortíferas do conflito. Dormia,
usando a Bíblia como travesseiro, quando os franceses jogaram o
explosivo dentro do abrigo alemão. Todos morreram, exceto Geiler. "Essa Bíblia é um memorial antiguerra, mostra como ela é cruel e sem sentido", conta o neto do soldado.
Markus tornou a história conhecida por meio de um projeto da fundação
holandesa Europeana, ligada à União Europeia, que roda o continente para
catalogar e fotografar objetos e documentos da época da guerra. A ideia é tornar público e de fácil acesso um material que se manteve restrito às famílias por cem anos. A entidade já digitalizou mais de 125 mil itens privados, além de
reunir outros 400 mil antes espalhados em bibliotecas, centros culturais
e arquivos audiovisuais.
Em outubro, o site com todos esses
documentos (http://europeana1914-1918.eu), hoje em inglês e outras dez
línguas, estará em português, marcando a campanha de coleta em Portugal.
Uma coleta no Rio de Janeiro está planejada para março de 2015, em
parceria com o arquivo da cidade.
Uma descoberta de grande
repercussão, via doação anônima, foi um cartão postal enviado em 1916
pelo então cabo do Exército alemão e futuro ditador Adolf Hitler. Após ter sido ferido em combate na França, Hitler foi para Munique, na
Alemanha, e de lá enviou o postal a um amigo de trincheiras, Karl
Lanzhammer. Aquele que seria o pivô da Segunda Guerra Mundial
diz estar sob tratamento dentário e demonstra ansiedade para voltar a
combater na Primeira: "Vou me apresentar como voluntário para o front
imediatamente".
Brasil
Apesar
da participação marginal do Brasil na Grande Guerra, duas histórias
trágicas recolhidas pela Europeana têm ligação com o país.
O jovem italiano Ernesto Pascotto emigrara com a família para o Brasil e decidiu visitar a terra natal em 1915. Ao chegar lá, a Itália entrou na guerra ao lado da França e do Reino
Unido. Pascotto acabou obrigado a se alistar e enviado para um campo de
treinamento. Nas cartas divulgadas por um parente, o soldado
reclama de ser obrigado a lutar e diz esperar que a guerra acabe antes
que ele esteja pronto para o combate. No entanto, o desejo não se cumpriu. Pascotto acabou morto em combate em dezembro do mesmo ano em que foi alistado.
Cartão postal enviado por Adolf Hitler em 1916
Outra história com final triste é a dos Davroux, uma família francesa
que vivia em São Paulo e decidiu voltar quando a guerra eclodiu porque o
pai, Jacques, se achava no dever de defender a pátria, contra os
conselhos dos parentes que haviam permanecido na França. Ele
embarcou num navio com a mulher, Marthe, e os dois filhos. A bordo,
conviveram civilizadamente com alemães que viajavam com o mesmo
propósito. Já no front, em março de 1915, Davroux relata a falta
de avanços militares, típica da guerra de trincheiras, e reclama da
proibição de ir ao funeral da mãe e do desinteresse de seus superiores
em fornecer roupas e equipamentos para as tropas, o que o obrigava a
usar um uniforme de bombeiro parisiense. Quatro meses depois, ao
atacar com seu pelotão uma bem armada trincheira alemã, Davroux, que
chegara a oficial, foi baleado na barriga, morrendo na hora.
Em uma carta de caligrafia torta e tremida, diferente de suas demais, a recém-viúva Marthe relata a morte. "Não posso imaginar infelicidade igual. Parece que ele ainda está ao
meu lado, meu desafortunado Jacques! Nunca me recuperarei de tamanha
dor."
A última carta digitalizada é de 1921. Seis anos após a
morte, o corpo do militar, enfim, foi transferido do cemitério do front
para Paris. Marthe, que nunca se casaria novamente, afirma: "Eu esperava incessantemente o corpo de meu pobre Jacques".
Fonte: Folha de São Paulo
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