sábado, 21 de novembro de 2020

AMTORG: A JANELA PARA A INDÚSTRIA DE DEFESA SOVIÉTICA

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Ao sair da sangrenta guerra civil, Rússia soviética teve que buscar meios de recuperar o atraso bélico.


Por Aleksandr Verchínin

A parte europeia do país estava em ruínas. Embora o Exército tivesse aumentado numericamente durante a guerra civil, o nível de armamento existente se encontrava no mesmo patamar que o dos países vizinhos, que estavam longe de serem potências militares avançadas.

Para se ter uma ideia, segundo os oficiais do Estado-Maior soviéticos, em caso de uma grande guerra europeia em 1927, bastariam os exércitos da Polônia e da Romênia, com o apoio material da Grã-Bretanha e da França, para destruir por completo o Exército Vermelho.

Só havia uma saída para a situação: era preciso construir uma nova indústria militar do zero. No entanto, a tecnologia e o desenvolvimento no Ocidente já estavam muito à frente. Enquanto na Rússia os vermelhos e os brancos matavam uns aos outros, os europeus conceitualizavam a experiência da Primeira Guerra Mundial, que marcou o início de uma nova era em assuntos militares. E ninguém desejava compartilhar esse know-how com os bolcheviques.

No final da década de 1920, a economia soviética já tinha se recuperado, e o governo conseguira angariar fundos para comprar grandes quantidades de equipamento militar no exterior. Quando, em 1929, a Europa e os Estados Unidos mergulharam nas profundezas da Grande Depressão, o ouro russo veio a calhar.


Arma diplomática

Nos primeiros anos de existência, a URSS não mantinha relações diplomáticas com muitos países do Ocidente e, por isso, teve que criar empresas privadas para iniciar as relações comerciais com o exterior. Na Inglaterra, por exemplo, a empresa Arkos operava desde 1920. Já nos EUA, as atividades comerciais em nome do governo soviético eram feitas pela empresa Amtorg.

Era pela Amtorg que passavam todas as questões relacionadas com a cooperação técnica entre a URSS e os EUA, desde a seleção de exemplares de tecnologia militar até a organização de viagens dos engenheiros soviéticos às fábricas norte-americanas. Mais do que tudo, era necessário adquirir dos americanos equipamento de aviação.

Ainda em 1922, os projetistas soviéticos tiveram acesso a um motor da marca Liberty, a partir de um avião norte-americano que havia sido capturado como troféu de guerra. Ele se distinguia por sua confiabilidade e qualidade de construção, portanto, foi decidido que seria copiado e produzido em série nas fábricas de Moscou. No entanto, um único exemplar não era suficiente – sem falar dos quilos de documentação técnica, peças de reposição e outros atributos valiosos que faziam falta.

Propaganda da Amtorg em revista norte-americana

A tarefa para encontrar tudo isso foi confiada à Amtorg, que recebeu uma generosa quantia para realizar o trabalho: US$ 1,5 milhão. No entanto, os diplomatas soviéticos se depararam com problemas de outra natureza. Em primeiro lugar, a empresa com participação soviética era olhada com desconfiança e ninguém estava disposto a vendê-la prontamente grandes lotes de equipamento.


Truques do capitalismo

A Amtorg teve que aprender a lidar com a “arte capitalista” de criar empresas temporárias. O primeiro lote de motores Liberty e 350 conjuntos de ignição foram adquiridos por meio do negócio de fachada “Gabinete Zaustinski”. Mas em poucos anos foram fechados contatos diretos e esse tipo de artifício deixou de ser necessário.

Graças à Amtorg, toneladas de carga entraram na URSS. Para o seu transporte, o Comissariado do Povo para o comércio exterior teve até que organizar um serviço especial. Só em 1925 foram comprados dos EUA instrumentos de aeronáutica no valor de US$ 400.000. Livros, desenhos técnicos, álbuns e manuais de fábricas americanas eram enviados para a União Soviética em contêineres.

Em 1929, a Amtorg intermediou a entrada nos EUA de um oficial da Força Aérea soviética cuja tarefa era estudar as instalações para a produção de paraquedas. Até então, ninguém tinha ouvido falar de paraquedas na URSS. Nos EUA, o visitante aprendeu não apenas como esses paraquedas eram feitos, mas também realizou um salto de teste. De tão inspirado com a experiência, o oficial se engajou na promoção a modalidade na Rússia e criou o primeiro esquadrão nacional de paraquedistas.

Joia da indústria aeronáutica americana, bombardeiro pesado B-17 quase foi para nas mãos dos soviéticos


EUA em crise

Inicialmente, os norte-americanos estavam um pouco relutantes em discutir a possibilidade de vender aeronaves completas aos russos. Porém, a crise econômica os obrigou a fazer concessões.

Em 1934 começaram a chegar aos Estados Unidos delegações soviéticas com o objetivo de adquirir os exemplares mais modernos. Essas delegações eram lideradas pelos proeminentes projetistas de aeronaves nacionais A.N. Tupolev, o pai do famoso TU, e M.I. Gurevitch, o criador do MiG.

Dois anos depois, um avião de carga DC-3, aviões anfíbios e um bombardeiro foram transportados dos Estados Unidos para a União Soviética. A joia da indústria aeronáutica americana não foi parar por pouco nas mãos dos soviéticos: o bombardeiro pesado B-17, que aterrorizaram as cidades alemãs e japonesas durante a 2ª Guerra.

Ao contrário dos tanques, nenhum desses exemplares foi para a produção em série. No entanto, diversos elementos foram incorporados na produção das famosas aeronaves militares soviéticas.

Fonte: Gazeta Russa

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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

UNIFORMES - REGIMENTO DE INFANTARIA DE PENICHE

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Exército Português
Regimento de Infantaria de Peniche
(1764)


O primeiro documento oficial conhecido que se refere explicitamente ao Terço de Peniche é a consulta de 13 de Março de 1698, onde consta a nomeação do Conde de S. João para Comandante do Terço de Peniche, que por essa época é “levantado de novo". 

Contudo, o Terço de Peniche só foi criado em 7 de Junho de 1698, através do decreto reorganizador da Infantaria e da Cavalaria, com 670 infantes e a gente que tinha aquele presídio, ou seja, a Praça de Guerra de Peniche, tendo sido levantado com base nas companhias de infantaria que, em 1693, faziam já parte da guarnição daquela praça de guerra.

Em 1707, com a publicação das novas ordenanças de D. João V, os Terços passaram a designar-se por Regimentos. 

Embora os soldados de infantaria utilizassem como padrão uniforme na cor azul, os músicos e tambores eram fardados de modo diferenciado. Este soldado-tambor veste túnica padronizada amarela e chapéu tricórnio, característico do século XVIII. Revestindo seu tambor, encontram-se as cores e o brasão da Coroa portuguesa.

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terça-feira, 10 de novembro de 2020

A INVASÃO ÁRABE NA ESPANHA (711)

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Em 28 de abril de 711, os árabes atravessam o Estreito de Gibraltar em direção à Espanha. Em quatro anos, conquistam quase todo o país, chegando até a França.

Por Jens Teschke


Tarik ibn Ziyad, o governador da cidade de Tânger, desembarcou na Baía de Algeciras com cerca de 8 mil soldados. Primeiro ele se instalou à volta do penhasco de Calpe, onde construiu suas primeiras fortalezas. Mais tarde, esse penedo recebeu o nome Djabal Tarik – o monte de Tarik – atualmente conhecido como Gibraltar.

Algumas semanas mais tarde, aportaram outros milhares de soldados – berberes em sua maioria – e Tarik seguiu terra adentro. O primeiro choque sangrento entre os árabes e os visigodos que dominavam a Espanha data de 19 de julho de 711. Os dois exércitos enfrentaram-se por vários dias e somente a traição por parte das tropas do rei Roderico decidiu a batalha. O caminho para Córdoba e Sevilha estava aberto para os mouros.

O reino visigótico estava praticamente esfacelado, a resistência era quase nula. Pode-se dizer que houve um colapso interno total após o primeiro ataque dos agressores estrangeiros, bloqueando qualquer resistência por parte da população cristã.

Os visigodos haviam subestimado o perigo representado pelos árabes. Depois que Tarik começou sua marcha do sul para o norte, bastaram apenas sete anos até que os novos conquistadores se estabelecessem. A penetração da cultura muçulmana na Europa tem consequências até hoje.


UE reconectou Espanha ao continente

Para a Espanha, a invasão representou o desligamento quase total da Europa, o início de uma história quase hermética desde a Idade Média até a Era Moderna. Segundo o historiador Michael Borgholte, da Universidade Humboldt de Berlim, não é exagero afirmar que só com a sua filiação à União Europeia é que a Espanha voltou a se conectar com o resto do continente.

Visto sob o pano de fundo da história europeia, a conquista muçulmana da Espanha foi o campo de experiências para o choque e a simbiose de três culturas, representadas pelas três grandes religiões: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo.

O processo de fertilização cultural foi especialmente intenso no século XI, sobretudo na cidade de Toledo. Os conhecimentos linguísticos de numerosos judeus eruditos ali residentes lhes permitiram traduzir para o latim os relatos históricos em árabe e grego. Por outro lado, a cidade logo atraiu estudiosos da Inglaterra, França e Alemanha para estudar esses documentos antigos.

A expansão muçulmana na Europa possui reflexos até os dias atuais

Porém, desde o século IX, as tensões cresciam. Partes da Espanha começaram a ser reconquistadas pelos cristãos. O resultado foram cruéis perseguições e pogroms, como, por exemplo, em 1066, quando 1.500 famílias judaicas foram assassinadas.


Início da Reconquista

A fase de poder ilimitado dos mouros acabou em 718, mas foi apenas no ano de 732 que os sucessores de Tarik sofreram a derrota definitiva. Eles haviam chegado longe, atravessado os Pireneus até Poitiers. Sob os golpes de Charles Martel, o avô de Carlos Magno, a Gália foi resgatada para a Europa. Após a vitória de Poitiers começou a Reconquista.

O processo foi difícil, já que os muçulmanos dilapidaram o país em sua retirada. A Espanha estava despovoada, cada investida dos cristãos, de 718 a 1493, implicou a recolonização uma a uma das regiões abandonadas. Antes de cada próximo passo, o vácuo deixado pelos mouros tinha que ser preenchido.

A Batalha de Poitiers, em 732, assinalou o limite da expansão muçulmana na Europa e o início da longa Guerra de Reconquista

Em 1493 os mouros estavam definitivamente vencidos. Com o apogeu dos reis católicos seguiu-se uma catolização radical da Espanha, excluindo qualquer possibilidade de convivência pacífica entre as diferentes culturas e religiões. Um ano antes, começara o êxodo dos judeus para os países vizinhos, expulsos pelo casal real Fernando e Isabel.

Hoje, tanto por seu passado como pela situação geográfica, a Espanha é a ponte entre a União Europeia e a África.

Fonte: DW


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

PERSONAGENS DA HISTÓRIA MILITAR: VERA GEDROITS, A PRINCESA QUE TRANSFORMOU A MEDICINA DE GUERRA

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Vera Gedroits sabia que corria contra o tempo. E tinha de escapar. O conflito armado na frente de batalha havia recrudescido e chegava cada vez mais perto.


Por Chris Baraniuk

Só quando o relógio marcava 2h, o enfrentamento começava a dar os primeiros sinais de arrefecimento. Enquanto isso, o trem onde estava, todo apagado para evitar ser avistado pelos inimigos, cortava a paisagem na calada da noite. O veículo - um hospital móvel - não seria um alvo importante de qualquer maneira. Mas agora que estava em movimento, as bombas começavam a cair em sua direção.

Gedroits olhou em volta para alguns dos pacientes a bordo. Ao todo, havia cerca de 900 pessoas, muitas delas urrando de dor em macas fixadas nas paredes devido a seus graves ferimentos. Infecções, feridas abertas... Gedroits não tinha tempo nem para respirar. Durante as horas seguintes, ela e sua equipe realizaram cirurgias e trataram aqueles que podiam ser tratados, enquanto o trem se afastava da frente de batalha. Cerca de 12 horas depois, o veículo finalmente tomou uma distância segura.

Duas semanas depois, em 10 de março de 1905, a batalha terminou com a derrota do Exército russo.


Voluntária na Cruz Vermelha

Este seria um ponto de virada na vida de Vera Ignatievna Gedroits, descendente da realeza lituana, cirurgiã talentosa e excêntrica. Conhecida justificadamente como princesa Gedroits, era uma figura extraordinária. Apesar disso, continua em grande parte desconhecida no Ocidente.

Como pioneira da medicina no campo de batalha, Gedroits fez contribuições que, segundo especialistas, poderiam ter salvo milhares de vidas durante a 1ª Guerra Mundial se tivessem sido mais compreendidas na época.

"Quando ouvi sua história pela primeira vez, ainda me lembro do que pensei: 'Por que ainda não fizeram um filme sobre isso?'", diz Melanie Stapleton, professora-assistente de medicina da Universidade de Calgary, no Canadá.

Mas quem era exatamente Vera Gedroits e por que não é tão lembrada?

Mesmo uma das principais informações sobre Gedroits - o ano do seu nascimento - tem sido motivo de dúvida. Muitos artigos dizem que ela nasceu em 1876, mas ela parece ter corrigido isso em seus documentos pessoais. Na verdade, Gedroits nasceu seis anos antes, em 1870, em Kiev, atual Ucrânia.

Não há muitos detalhes em inglês disponíveis sobre sua infância, mas sabe-se que ela vinha de uma família rica e estudou em casa antes de terminar a escola em São Petersburgo. Quando tinha 16 anos, foi presa por participar de atividades revolucionárias organizadas por uma facção de esquerda.

Gedroits voltou, então, para casa, mas logo fugiu para Lausanne, na Suíça. Foi lá que estudou medicina. Gedroits teria sido uma das milhares de mulheres que estudaram medicina naquele país no final do século XIX e início do século XX. À época, a Suíça era uma exceção à regra: suas universidades aceitavam estudantes de medicina do sexo feminino.


Começo da carreira

Em 1901, Gedroits retornou à Rússia, onde mais tarde passaria pelos exames de admissão e oficialmente ganharia o título de médica. Sua carreira na área não começou no campo de batalha, mas em uma propriedade industrial. Foi nomeada cirurgiã na fábrica de cimentos de Maltsov, no distrito de Zhizdrinsky, no oeste da Rússia.

De acordo com um artigo em russo sobre sua carreira, seu trabalho ali foi transformador. Ela planejou montar uma estrutura hospitalar adequada e, em pouco tempo, instalara equipamentos de fisioterapia e uma máquina de raios-X - algo absolutamente inovador para a época. Para se ter uma ideia, os raios-X haviam sido descobertos em 1895, menos de uma década antes. Em seu primeiro ano, 103 pacientes de casos cirúrgicos foram tratados em seu hospital; apenas dois morreram.

Os operários recebiam tarefas fisicamente exaustivas. Havia muito trabalho pesado e, em uma seção que fazia vidro, a matéria-prima era moldada por meio do sopro. Em seus relatos, Gedroits observou que esse tipo de trabalho enfraquecia gradualmente os músculos abdominais. Foi por isso que ela acabou operando tantos pacientes com hérnias, supunha.

Ser uma especialista nessa área do corpo era incomum na época - e isso acabou beneficiando-a no futuro de maneiras que ela própria não poderia imaginar. Somente dois anos depois, a Guerra Russo-japonesa começaria. Gedroits se ofereceu como voluntária para a Cruz Vermelha.

Vera Gedroits destacou-se por sua atuação na Guerra Russo-Japonesa, conflito extremamente mortífero. Na imagem, feridos russos sendo atendidos em um posto de socorro

O conflito foi muito sangrento e degradante. É frequentemente descrito como uma espécie de prévia da 1ª Guerra Mundial, que começaria cerca de uma década depois. Ambos tinham trincheiras, muitos impasses e numerosas "vitórias" de batalha em que ambos os lados perderam milhares de homens.

Em última análise, cerca de 100 mil pessoas foram mortas na guerra russo-japonesa ao fim da qual a Rússia foi efetivamente derrotada - uma surpresa considerando que o Japão era um país muito menor e cheio de problemas econômicos.


Dificuldades no front

Existem poucas fontes em inglês que detalham as atividades de Gedroits durante a guerra. No entanto, em 1997, o médico militar britânico John Bennett escreveu um artigo em uma revista científica no qual fez resumo traduzido do próprio registro dela sobre o conflito.

O artigo de Bennett parece nunca ter sido publicado, mas um rascunho foi enviado para Yuri Kolker, um ex-produtor de filmes russos no Serviço Mundial da BBC, que gentilmente compartilhou a carta com a reportagem da BBC Future.

Em 26 de setembro, Gedroits estava montando um hospital de campanha em um pequeno vilarejo perto da cidade de Mukden, hoje conhecida como Shenyang, na China. Este seria um local estratégico para as forças russas nos meses seguintes.  O trem de Gedroits era o coração de seu destacamento no local, mas o próprio hospital não estava confinado aos vagões. Ele havia se expandido pelos arredores do trem, em fileiras de barracas. Cabanas de camponeses também foram tomadas e convertidas em um centro cirúrgico, assim como alguns armazéns.

Para a sala de operações, as paredes do interior eram cobertas de argila e depois caiadas de branco. Lençóis esterilizados também foram usados para cobrir o local e torná-lo o mais higiênico possível.

No primeiro mês ali, Gedroits e sua equipe se viram tratando uma imensa variedade de lesões graves. Muitas envolviam ferimentos de balas e fragmentos de granadas. Havia mais de 700 casos de tais lesões nos membros, 143 no peito e 61 no abdômen, por exemplo.

Gedroits relatou o caso de um homem que foi hospitalizado com fragmentos de granada alojados em sua cabeça. A lesão causou a perda de controle do lado esquerdo do seu corpo. Gedroits fez uma incisão na cabeça do paciente, abriu as feridas com uma pinça e retirou três grandes pedaços de estilhaços.

Um punhado de outros pequenos estilhaços também foi removido. Após a operação, o paciente pediu um cigarro. "Aqui - tente com a mão esquerda", disse Gedroits. Para a satisfação dela, ele foi capaz de segurá-lo.


Aprendendo com os ferimentos

A médica fez anotações extensas sobre os ferimentos que tratou. Também escreveu sobre os tipos de armas que os causaram. Por exemplo, ela descobriu que fragmentos de granadas e bombas explosivas deixavam uma marca amarela na pele.

Relatório médico contendo os ensinamentos adquiridos no conflito, publicado por Vera Gedroits

Com o passar dos meses, o clima esfriou. Um dos maiores desafios que Gedroits e seus colegas enfrentavam em seu trem hospitalar era justamente as baixas temperaturas, que afetavam gravemente os pacientes hospitalizados nas tendas e os soldados feridos que voltavam do front. Alguns chegaram a sofrer queimaduras por frio.

Mas, em janeiro daquele ano, um vagão que funcionava como centro cirúrgico foi adicionado ao trem - um importante complemento nas instalações. No mês seguinte, o hospital móvel foi enviado ao longo da estrada de ferro de Mukden para as minas perto de Fushan, onde se encontravam muitos homens feridos.

Nas primeiras quatro semanas, Gedroits realizou nada menos que 56 operações. Pacientes convalescentes foram colocados em vagões adicionais, aquecidos, onde podiam se recuperar com maior conforto do que as tendas ao ar livre.

Mas foi nessa época que o controle do Exército russo sobre a região começou a se afrouxar. Os japoneses realizaram um ataque inteligente durante a famosa Batalha de Mukden. Em 22 de fevereiro, Gedroits e seu trem foram obrigados a recuar. Foi neste dia que ocorreu a ousada fuga que abre esta reportagem.

Em suas anotações, Gedroits descreveu principalmente a dificuldade apresentada pelas lesões abdominais. Médicos militares estavam bastante familiarizados com este problema na época, diz o cirurgião aposentado e historiador britânico Michael Crumplin. Em muitos casos, os cirurgiões optavam por não intervir - em vez disso, os soldados com ferimentos abdominais seriam simplesmente monitorados na esperança de que sua condição melhorasse. Muitas vezes, o paciente morria.

Mas, contrariando o que era praxe na época, Gedroits interveio em alguns casos, realizando laparotomias - incisões exploratórias do abdômen - para ver se conseguia interromper o sangramento ou drenar o excesso de líquidos, por exemplo.

De acordo com Bennett, Gedroits descreveu as vantagens de fazer esse procedimento em suas anotações nos anos seguintes. Neles, destaca a necessidade de que os exames sobre os abdomens feridos deveriam ser concluídos o mais rápido possível.

Crumplin explica que, como os músculos da parede abdominal são muito apertados, a anestesia deve ser usada para relaxá-los durante as operações. É possível conter hemorragias e fezes que vazem do intestino, mas o risco de infecção continua alto. Há também grandes vasos sanguíneos suprindo o intestino; qualquer corte mal feito pode ser fatal. E muitos órgãos vitais - como o pâncreas - estão próximos, aumentando os riscos de morte se a operação não der certo. Além disso, não há certeza de que o intestino se recupere uma vez operado.

"Todo o intestino para de funcionar, a barriga se distende, você vomita e morre de desidratação", diz Crumplin. "As cirurgias na região abdominal trazem consigo enormes desafios".

Gedroits parecia ter conhecimento de tudo isso, mas permaneceu indiferente, aprimorando o atendimento.  Seu trabalho chegou a ser mencionado em um relatório britânico sobre o serviço médico russo durante a Guerra Russo-Japonesa, mas há poucos detalhes sobre ele. A falta de documentação sobre as atividades da Gedroits significa, nas palavras de Steven Heys, chefe da escola de medicina da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, que "perdemos uma enorme oportunidade".

Gedroits descobriu que levar o trem-hospital o mais próximo possível do front de batalha era crucial - como analisar alguns ferimentos dentro de prazos específicos. Três horas ou menos para feridas abdominais, por exemplo. Ela fez, inclusive, anotações sobre o melhor tipo de bandagem para usar em determinado estágio do tratamento.

Se outros tivessem prestado atenção a essas percepções, as baixas durante a 1ª Guerra Mundial poderiam ter sido reduzidas, acrescenta Heys: "Afinal, seus registros se tornaram públicos em 1905, dez anos antes do início da guerra".

Findo o conflito, a vida de Gedroits não ficou menos atribulada. Ela retornou ao posto que tinha na fábrica, expandindo o hospital que administrava ali. Alguns anos depois, passou a trabalhar para a família real russa.

Como cirurgiã no hospital do palácio Tsarskoye Selo, chegou a ensinar até a imperatriz Alexandra e suas filhas Tatiana e Olga as técnicas básicas de cirurgia. Em uma foto, a própria imperatriz é vista entregando instrumentos a Gedroits enquanto ela realiza uma operação.

Gedroits, auxiliada pela Imperatriz Alexandra e pelas Grã-duquesas Olga e Tatiana, opera um paciente

Mas Gedroits não era bajuladora real. Conta-se que ela teria empurrado o confidente da imperatriz, Grigori Rasputin, quando ele se recusou a sair de seu caminho. Em 1917, a revolução ameaçava a existência da família real russa. Gedroits voltou, então, a trabalhar como cirurgiã no campo de batalha na 1ª Guerra Mundial. Acabou ferida e foi morar em Kiev, na Ucrânia. Ali, Gedroits foi contratada para ensinar cirurgia pediátrica e, posteriormente, nomeada professora.

Mas a medicina não era sua única paixão. Ela se tornou poeta, publicando vários livros. Em Kiev, sua excentricidade era notada pelos moradores locais. Gedroits era conhecida por suas roupas masculinas, sua voz profunda e seu relacionamento íntimo com mulheres. Muitos dizem que ela era lésbica.

Em 2007, um artigo na revista científica Clinical and Investigative Medicine lamentou o fato de que o mundo parece ter se esquecido de Gedroits. Ela é um exemplo clássico de como o conhecimento e a experiência em benefício dos outros podem se perder. Em parte por causa das circunstâncias, mas também, talvez, porque a sociedade prefira prestar atenção a certos tipos de pessoas em detrimento de outras.

"Estamos celebrando muita gente hoje em dia, mas nos esquecemos dessa mulher incrivelmente bem-sucedida e muito interessante", diz Wilson. As probabilidades estavam contra ela, acrescenta Stapleton. "Ela era aliada da família real, mulher, contrariava as normas sociais - publicava (seus livros) em russo. Qualquer uma dessas coisas seria usada contra ela", explica ela. "Tudo isso combinado impediu que ela ganhasse o reconhecimento que deveria".

Vera Gedroits morreu em 1932 e foi enterrada em Kiev. Segundo relatos, seu túmulo teria sido cuidado por muitos anos por um arcebispo que ela havia tratado quando jovem. Quando ele morreu, escolheu ser enterrado ao lado dela.

Parece uma pena que a fascinante história de vida de Gedroits não seja conhecida mais amplamente. O primeiro pensamento de Stapleton, ao descobrir a história extraordinária de Gedroits, ainda parece perfeitamente adequado: a vida dela não valeria um filme?

Fonte: BBC