Correspondência de soldados alimenta livros que se aprofundam no lado mais humano dos trágicos episódios do último século
Por Tereixa Constenla
Por acaso as vidas de Toyofumi Ogura e Humberto Alonso Pérez são menos história do que as vidas do imperador japonês Hirohito e do ditador espanhol Franco? Durante alguns séculos os historiadores marginalizaram as vidas minúsculas para debruçarem-se sobre as maiúsculas do poder. Vista assim, a guerra era uma história de planos, escaramuças, estratégias, generais, glórias e derrotas. Os soldados eram uma magnitude, um número no campo de batalha. “As pessoas a quem a história se refere só aparecem como figuras acessórias, como um pano de fundo, como uma massa escura no fundo da cena”, escreve Hans Magnus Enzensberger.
Esse caminho historiográfico teve seu dano colateral, na opinião da historiadora francesa Sabina Loriga. Durante a Primeira Guerra Mundial, a maioria dos historiadores políticos foi “incapaz de compreender as graves tensões sociais que perturbaram a Alemanha e a Europa em geral”.
Carta de um soldado alemão escrita no front em 1917
Existe uma história oficial sobre o 6 de agosto de 1945, quando Hiroshima perdeu 90% de suas construções e 25% de seus habitantes em meia hora. A destruição e as doenças continuariam crescendo muito tempo depois da explosão da bomba atômica Little Boy e da rendição do imperador Hirohito. Os norte-americanos mediram o impacto da catástrofe que eles mesmos causaram: 306.545 atingidos. Nos relatórios, entretanto, não é possível ver o medo, a incredulidade e a dor dos moradores de Hiroshima, protagonistas forçados da hecatombe. Para isso é bom ler as cartas que Toyofumi Ogura (1899-1996) escreveu a sua esposa Fumiyo: “Quanto mais avançava, mais me empenhava em seguir o ditado dos três macacos de ‘não ver o Mal, não escutar o Mal e não dizer o Mal’, e procurava não falar com ninguém. Depois de encostar no cadáver daquela mulher no final da ponte do bonde, rio abaixo a partir da ponte Kyobashi, decidi acrescentar um quarto macaco sábio que indicava ‘não tocar no Mal”.
Ogura, professor de História na Universidade de Hiroshima, escreveu 13 cartas que sua destinatária nunca chegaria a ler: “Logo depois de minha catástrofe me senti possuído pela sensação de precisar informar minha esposa, vítima da bomba, dos fatos posteriores a sua morte, ainda sem saber absolutamente nada da arma atômica e da doença causada pela radiação”. Após superar a censura das forças aliadas – o Japão era um país ocupado desde sua rendição em 1945 –, foram publicadas em 1948.
Soldados britânicos lendo cartas em 1944
Cartas desde el Fin del Mundo (Cartas do Fim do Mundo, ainda inédito em português) foi o primeiro relato pessoal sobre a bomba atômica e em poucos meses precisou ser reeditado seis vezes pelo interesse que causou. Ogura conta suas experiências, suas observações, seus sentimentos. De suas mãos percorrem-se caminhos transitados por pessoas comuns feridas, nocauteadas, fantasmagóricas, que perambulam por uma cidade em ruínas. Uma verdade íntima que ele compartilha.
Como fonte primária, as cartas estão ligadas à história desde sua origem – Plínio, o Jovem, narra a destruição de Pompéia pela erupção do Vesúvio no ano 79 em uma carta ao historiador Tácito –, ainda que sem o peso que alcançaram nas últimas três décadas. “Agora são o ponto de partida, e não só um instrumento de segunda ordem, para fazer uma análise histórica da cultura popular e explorar campos da história social que de outra forma não poderíamos”, diz Guadalupe Adámez Castro, autora de Gritos de Papel, uma história sobre o exílio espanhol realizada sobre os escritos de súplica de republicanos. Cartas que davam e tiravam vida, como relatou Eulalio Ferrer, preso em um campo de internação na França: “A correspondência é um elemento vital de nosso presente destino, significa tanto ou mais do que a comida. É o laço que nos une com o mundo, contribuindo para acentuar e diminuir nossas incertezas”.
Após seu estudo, Adámez concluiu que o exílio foi transversal tanto em origem como geográfico, mais heterogêneo do que a imagem de uma diáspora de intelectuais. E também que as cartas alimentavam uma relação de ida e volta: “Para o Governo republicano no exílio era uma forma de manter certa esperança na República e de poder saldar uma dívida com aquelas pessoas”.
Em uma guerra, afirma José Álvarez Junco no prólogo de Voces desde la Trinchera (Vozes da Trincheira), “ignoramos como viviam os soldados daquela experiência, o que pensavam, o quanto acreditavam da enxurrada retórica que lhes caía na cabeça, como aceitavam aquelas punições”. Nesse livro, James Matthews, membro do Centro de Estudos da Guerra na Universidade de Dublin, estuda cartas escritas entre 1938 e 1939 por soldados do Exército da Andaluzia, como Manuel Cantudo: “(...) se me visse descalço, andando com a sola do pé, e estou cheio de dizer ao tenente, e ele me fala que não há calçado”.
Carta de Humberto Alonso Pérez a sua esposa, Carmina, e ao seu filho, Guillermo, da prisão de El Coto (Gijón), em 14 de abril de 1938.
A publicação de cartas ajuda a rastrear o sentimento dos soldados da Wehrmacht – o correio militar alemão transportou 3 bilhões de cartas e pacotes durante a guerra –, o dos guerrilheiros condenados à morte pelos nazistas na França e o dos prisioneiros do campo de concentração de Mauthausen. “A carta é um documento particular que permite comparar o discurso do poder com o dos seres de carne e osso que não tiveram poder e, por outro lado, nos permite entrar no coração das pessoas para saber como vivenciaram os acontecimentos. O ápice tem muito a ver com o egodocumento, quando os historiadores começam a usar diários, memórias e cartas”, diz Verónica Sierra Blas, membro do Seminário Interdisciplinar de Estudos sobre a Cultura Escrita da Universidade de Alcalá de Henares e autora de dois livros sobre o século XX espanhol construídos sobre o gênero epistolar.
O primeiro, Palabras Huérfanas (Palavras Órfãs), reconstruiu a história das 30.000 crianças espanholas exiladas durante a Guerra Civil Espanhola na França, Bélgica, Inglaterra, México e Rússia a partir de suas cartas e diários. O segundo, Cartas Presas, se introduz no interior do sistema penitenciário durante a guerra e o franquismo através do estudo de 1.500 cartas. O remetente de uma delas é Humberto Alonso Pérez, que escreveu da prisão de El Coto, de Gijón, em 14 de abril de 1938, um mês antes de ser executado, a sua esposa, Carmina, e ao seu filho, Guillermo: “O destino me separa de vocês, me elimina da vida; o enfrento com integridade porque sei que suas vidas serão modelos e exemplares, cúmulo de honradez. Jamais se detenham em culpar alguém por minha sorte”. A história com outros nomes e sobrenomes.
Fonte: El País